Muita gente fala sobre o trabalho épico que deve ter sido para Tolkien construir a Terra Média. Não foi só escrever alguns livros. Ele criou toda a história milênios antes, criou até a língua (convenhamos que ele era linguista, então era mais fácil pra ele!). O que você vê na trilogia famosa é como a ponta de um iceberg. Existe uma montanha inteira por baixo, fazendo com que aquele pedacinho apareça para fora d’água.
Se você for um tarado, você vai fazer o que o Tolkien fez. Ou, talvez, se você foi David Gaider, Lead Writer da Bioware Edmonton, o sujeito responsável por criar o universo de Dragon Age. Pelo menos o Gaider estava sendo pago para isso!
Agora, convenhamos, o ser humano levou para lá de 10.000 anos para chegar onde chegou hoje. Muita coisa aconteceu, cada uma com sua consequência, cada consequência com suas ramificações. Ou seja, construir um mundo “de verdade” é impossível.
Uns dois anos atrás George R. R. Martin (que eu já lia antes de ser moda, diga-se de passagem) deu uma palestra sobre escrita. Ele fez a referência acima, sobre Tolkien e o iceberg. Sua comparação foi algo mais ou menos assim: “Se Tolkien criou um iceberg inteiro, eu coloquei uma pedra de gelo sobre uma prancha de madeira e empurrei para o oceano.”
O que ele quer dizer é que ele criou a ilusão de profundidade sem necessariamente ir tão a fundo. E geralmente isso é tudo que você precisa.
O truque gira em torno de focalizar em um aspecto desse universo, uma região, e fazer ligações menos profundas sobre o resto. No seu livro, jogo, etc você planta as sementes. Usando novamente Tolkien e Martin como exemplos, você coloca alguma coisa na montanha distante, algo além do foco da história, uma menção, uma lembrança, um comentário, e pronto. Martin faz muito disso ao longo da série A Canção de Gelo e Fogo com menções sobre outras terras distantes ou personagens e eventos do passado. Não existe uma necessidade de escrever todo um tratado em torno disso contanto que se entenda o que levou ao que.
Em Guerra dos Tronos, a colonização de Westeros se deu após a queda de Valíria. Pouquíssimo se fala sobre Valíria nos livros, mas sabe-se que o aço valiriano é o melhor que há, que os antigos senhores de Valíria dominavam dragões e que foram grandes conquistadores. Jamais Valíria apareceu, mas ela está presente em todos os lugares. Nomes de antigos heróis aparecem por toda a parte, ruínas de tempos antigos e, vez ou outra, um personagem exótico vindo de uma terra distante.
Inclusive esse é um dos grandes truque de Martin: os detalhes. A partir do ponto em que se semeia informações aqui e ali, seja numa música folclórica, no nome de um prato ou na descrição de uma ruína antiga, o mundo parece se tornar mais vivo.
Muitas das cidades do mundo hoje guardam camadas da sua história. E você não precisa ir até Roma, onde o trânsito do dia a dia acontece em torno de ruínas de mais de dois mil anos e onde pessoas moram literalmente sobre antigas ruínas. Andar em uma grande cidade do Brasil geralmente implica em andar pela sua história.
Vamos pegar o centro do Rio de Janeiro como exemplo. Você só precisa dar uma caminhada por lá para ver uma mistura de prédios dos anos 80 com construções com duzentos, trezentos, mais anos. O Arco do Teles, uma ruela fechada onde hoje ficam bares cheios no happy hour pós-trabalho, está lá há séculos. Os bares em si nada mais são do que antiquíssimos sobrados que já foram pensões e tavernas na época do Império. Do lado oposto da praça, uma construção com paredes pintadas de branco que a maioria das pessoas ignora, mas uma vez foi onde Dom João VI recebeu a corte e, antes, onde o governador da colônia vivia. A praça, que hoje é apenas passagem para quem vai e vem entre Rio e Niterói através das barcas já foi o coração da cidade. Não muito longe dali existe uma praça abandonada onde cerca de dois séculos atrás foi o primeiro Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um lugar considerado espetacular no seu tempo.
O tempo passa e as coisas mudam, mas deixam seus vestígios.
Petrópolis, na serra do estado do Rio de Janeiro, é outro ótimo exemplo. Foi fundada pelo Imperador Dom Pedro II em meados do século 19, num local onde seu pai pretendia construir um palácio. Chegou a ser capital do estado por quase uma década antes de ser praticamente esquecida após a fundação de Brasília. Para muitos cariocas de classe média e média alta, Petrópolis hoje é só um lugar para ir nas férias ou passar um fim de semana prolongado. No entanto, no centro de Petrópolis fica o Museu Imperial, onde uma vez foi o palácio que deu origem à cidade. Afastando-se pouco do centro você começa a encontrar fábricas antigas abandonadas, os esqueletos da época onde a indústria têxtil petropolitana era forte.
A mistura de arquitetura conta sua própria história, assim como os nomes dados aos bairros. A história de uma nação é contada principalmente pelas suas cidades, até porque muito da história oficial é apenas isso: aquilo que alguém decidiu ser verdade.
Toda nação tem seus altos e baixos, assim como uma civilização ou a própria vida no planeta. Olhar as camadas de uma antiga rocha cheia de fósseis ou os anéis no corte de uma árvore são como examinar as camadas da história em uma cidade.
O truque é pensar os elementos que levaram seu reino, nação ou planeta ao ponto em que estão hoje. A ficção está cheia de reinos de papelão onde não existe qualquer sensação de história para dar a fundação para sua existência. Nenhum reino surgiu do nada. Nenhum povo conquistou seu espaço sem passar por desafios. Lembre-se dos antigos anteriores, quando falei do Egito Antigo e do Império Romano. O primeiro durou 3.000 anos, o segundo, cerca de 500. Quanta coisa aconteceu ao longo deste tempo? Derrotas, vitórias, mudanças sociais e culturais. Você não precisa detalhar cada uma delas. Precisa, apenas, saber que são essas cicatrizes que darão ao seu mundo mais profundidade e mais vida.
E se um dia você precisar detalhar esses elementos, seja para a cena de um livro, uma aventura de RPG ou uma fase de um jogo, aí sim vá mais a fundo. E esse novo pedaço da história não soará como algo mal encaixado na sua história, mas sim como um segredo ancestral escondido até aquele momento.
Semana que vem vou falar sobre mitologias locais e como elas podem tornar seu mundo mais crível.
Muito bom, como sempre. Parabéns!
ResponderExcluirPra mim, o mais difícil sempre é PARAR de aprofundar a história. Mais de uma vez direcionei esforço demais no backstory e ele acabou ficando mais interessante que a história principal, mas foi essencialmente jogado no lixo porque o jogo não era sobre aquilo. Aprender a dar esse zoom out na ambientação e pensar objetivamente no papel que um determinado elemento de backstory cumpre no arco principal da história é por si só uma arte!
Hoje em dia tento criar um backstory que gere premissas de ambientação interessantes, mas não crio o lore imediatamente antes da história principal (décadas ou séculos), justamente pra deixar um amplo espaço a preencher com o que a história principal pedir. Naturalmente, depois vem um trabalho de amarrar tudo, mas sinto que dessa forma é mais fácil assegurar que o backstory cumpre o papel que tem que cumprir.
Sabe que isso tem nome, né? "World-builder's Disease" :D
ResponderExcluirEm um artigo mais pra frente vou contar como foi a criação de um dos mundos que fiz para um video game. Acho que deve ajudar a dar uma ideia.
A verdade é que é fácil nos apaixonarmos tanto pelo que criamos que perdemos o foco. É questão de prática mesmo. Lembrar seu objetivo imediato, e deixar as pontas soltas para quando for possível (ou necessário) explorá-los.