Marcadores

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Construindo Mundos: Deuses de Todos os Mundos Possíveis

Se é para começar com um assunto complicado, vamos pegar logo o mais propenso à briga: religião. Não importa qual seja a sua crença, é importante entender que a crença em um ou mais deuses (ou conceitos) moveram (e movem) muito da sociedade humana. Historiadores especializados em História Antiga acreditam que a primeira cidade do mundo, Uruk, na Mesopotâmia, foi fundada como local de encontro religioso.


Ao longo do artigo vou mencionar várias crenças religiosas (e eventos históricos relacionados). A ideia do artigo não é falar detalhadamente sobre religião alguma, nem apontar uma ou outra (ou nenhuma) como ideal. Independente do que eu acredito (que não vem ao caso aqui), o tema aqui é a criação de mundos ficcionais. Ponto.


A crença religiosa é elemento importante em qualquer universo ficcional, seja ele de fantasia ou de ficção científica. Na série de jogos Halo o inimigo a ser enfrentado é a Covenant, uma aliança de diversas espécies alienígenas que cultuam como deuses os Forerunners (clássicos alienígenas ancestrais altamente avançados). Em Duna, os Fremen acreditam na chegada de um messias profético, que acaba sendo o protagonista da série. Em ambas as versões da série Battlestar Galactica a crença nas Doze Colônias de Kobol (e a Tribo Perdida) são pontos importantes em vários episódios.


Conflito, claro, pode vir de diversas formas. Um paladino se depara com uma situação complicada: será que ele deve seguir os preceitos de seu deus mesmo que isso signifique a morte de inocentes? Uma corporação compra um terreno rico em um raro minério, mas a população local vê o mesmo local como sagrado. Membros de facções opostos de uma mesma religião encontram uma relíquia sagrada. E falando em facções opostas...
Vamos usar o Cristianismo como exemplo: O cristianismo é uma derivação do judaísmo. Após a morte de Jesus houveram conflitos sobre a criação do cristianismo. A Bíblia católica menciona um desentendimento entre Pedro e Paulo (e vários outros personagens famosos do livro). Lá pouco se fala sobre o conflito, mas alguns historiadores vão mais longe: dizem que há relatos de que o conflito foi sério ao ponto de envolver briga nas ruas, quase como duas gangues rivais. O que entrava ou não na Bíblia foi discutido por séculos até ser decidido pra lá do ano 1.000, o que levou a divisão da igreja em Católica e Ortodoxa. Sim, 1.000 anos para decidir o que era verdade. 500 anos depois outra discussão (a Reforma) levou a formação de outro grupo: os protestantes. Ao longo de 2.000 anos surgiram dezenas de variações: católico, ortodoxo, copta, oriental, batista, pentecostal e evangélico, só para mencionar algumas.


Claro que como uma religião aparece num universo ficcional faz diferença. Deus (seja ele um ou vários) aparece fisicamente nesse mundo? Muitas sociedades viam seus líderes como deuses na Terra: o imperador chinês, o faraó egípcio e o rei inca são exemplos de líderes divinizados. Se deus está ali do seu lado guiando-o, será que isso não faz a diferença para você? A própria crítica sobre a existência ou não de um (ou mais) deuses muda quando ele aparece na Terra e demonstra seus poderes. Não é por aí que vem o conceito dos Deuses-astronautas? Na trilogia de trilogias Heritage/Legacy/Inheritance do autor Ian Douglas (mencionada alguns meses atrás na série de artigos sobre Space Opera), os An são uma espécie alienígena que escravizou os povos da Mesopotâmia. “An” é o nome do deus supremo Mesopotâmico. Inclusive, se bem me lembro, teria sido um asteroide jogado contra eles por uma espécie inimiga que teria dado origem à história do Grande Dilúvio.


Um dos clichês mais clássicos da fantasia é o do politeísmo. Talvez seja uma herança da mitologia Grega onde deuses não só eram muitos, mas sempre presentes nas histórias narradas. Mas nem a própria crença religiosa grega era assim tão simples ao longo de séculos.


No politeísmo ‘clássico’, uma sociedade acredita em vários deuses, geralmente cada um com um tipo de aspecto ou preocupação. Nessas sociedades uma mesma pessoa pode fazer oferendas para um deus que protegerá sua casa, depois para outro que curará a doença do seu filho, então a um terceiro, que fará chover naquela temporada. Não existe exclusividade a não ser dos próprios sacerdotes.


A monolatria é diferente. Nela a sociedade acredita que, sim, podem existir vários deuses, mas um deles é superior aos outros. É o caso de Zeus como deus dos deuses Gregos, mas é também o caso durante parte da história do Egito Antigo. Dependendo do período, diferentes cidades tinham diferentes deuses-patronos. O poder (e o conceito de deus superior) mudava de tempos em tempos, com base no poder político dos seus sacerdotes. É algo parecido com os Astecas, que tinham, em cada ciclo de existência, um deus como sendo superior aos demais.


Muitos historiadores e antropólogos acreditam que essa mudança era diretamente ligada aos conflitos e a força de certas facções, ao ponto de que os próprios dogmas de uma religião poderiam mudar com base nas mudanças sociais. O faraó egípcio não era sempre considerado deus da mesma forma que nem sempre Rá foi o líder do panteão. Em outro caso, o Império Romano costumava assimilar culturas conquistadas de uma forma bem simples: “Sabe esse teu deus X? Na verdade ele é nosso deus Y, só que com outro nome.” Um caso similar é o que aconteceu aqui mesmo na América, onde os orixás da crença africana (eles mesmos ancestrais divinizados, e não deuses como alguns pensam) foram associados à santos católicos, no caso para que os africanos escravizados pudessem continuar a cultuar sua religião sem chamar atenção.


Chega de falar sobre o mundo real. Vou dar dois exemplos ficcionais que criei. 

Na ficção científica do Taikodom, criei o Culto dos Antigos, homens e mulheres trazidas do passado para um futuro hipertecnológico que surtaram com a descoberta de ruínas paleoalienígenas (sim, é bem clichê). Membros do culto acreditam que esses paleoalienígenas que deixaram para trás sua tecnologia, selaram a Terra atrás de um escudo intransponível e mataram praticamente todos os seres humanos no planeta só podem ser deuses-astronautas. Um membro do Culto vai aos extremos para coletar qualquer lasca de xenoartefato ou impedir a terraformização de planetas, inclusive destruir uma estação espacial civil inteira.

Esse semestre sairá meu romance Império de Diamante, fantasia inspirada em culturas e mitologias africanas. Nesse universo, o líder do Império é um imortal cultuado como deus-vivo. Toda e qualquer outra religião é considerada heresia. Seu modus operandi? Conquista de territórios vizinhos, assimilação da população, perseguição de líderes religiosos e não destruição, mas edição de heresias. Existe toda uma ordem eclesiástica cujo papel é ler documentos de povos conquistados e editá-los de forma que a história seja apenas a história narrada pelo clero do Deus-vivo. Ao longo de décadas e séculos os povos conquistados deixam de resistir, pois sua identidade deixa de ser a de seus ancestrais e torna-se a de seu conquistador. A resistência existe, sim, mas em geral entre os povos conquistados mais recentemente, como é o caso do Povo do Vale, que não crê em um deus, mas sim numa série de preceitos, e que uma força divina os guiou através da Estrela da Manhã até a Terra Santa (essa agora recém-conquistada pelo Império). O Povo do Vale resiste bravamente, mas apenas porque acredita que é seu dever defender a Terra Santa, custe o que custar.
Só para provar que um universo ficcional rico pode servir de base para muita coisa, além do livro sairá ainda esse ano um jogo de computador (um adventure curto, gratuito) e um sistema de RPG, além de alguns contos. Ao longo do ano que vem, claro, vem mais.


Exerciciozinho? Crie uma religião. Não qualquer religião. Crie uma religião onde o conceito de divindade não é humanizada. Seu deus ou deusa pode ser uma ideia, um monstro, uma coisa. O que levou seus seguidores a crerem nele? Que mandamentos essa religião teria? De que forma outras religiões veriam essa religião? Como os seguidores dessa religião interagem com seguidores de outras religiões? Existe algum tipo de rito ou símbolo sagrado? Quais e por quê? Como ela interage com a magia e/ou tecnologia desse mundo?
Semana que vem: a história de uma nação.

Até lá!

2 comentários:

  1. Curti, complexo é criar várias deidades e nunca usá-las na ambientação... Já vi isso ocorrer... Elas existem, mas não interagem em momento nenhum...

    ResponderExcluir
  2. É verdade. E entra no que eu falei antes. Se a informação não tem utilidade na sua história (especialmente se for um livro), ela não deveria estar no seu livro.

    Para existir um elemento qualquer precisa servir ou para avançar a história, gerar novos problemas para o protagonista ou apresentar o cenário para o leitor.

    ResponderExcluir