Já ouvi de muita gente chamar um universo ficcional ou outro de “colcha de retalhos”. É aquele efeito que acontece quando a coisa não soa integrada o suficiente, quase como se existissem bolhas isoladas as quais personagens são capazes de atravessar facilmente. O problema desse tipo de mundo é que ele acaba chamando atenção pela coisa errada.
Esse assunto é complicado. Foi o primeiro que eu escrevi 3 vezes antes de chegar a essa versão. Para isso, resolvi dividir o indivisível, dando um foco específico para cada artigo. Nesse vou tratar um pouco do conceito geral.
Nosso mundo real é muito mais integrado do que pode parecer. Um conflito no extremo asiático pode levar à queda de um império do extremo ocidente europeu. Uma revolução em um continente pode desencadear uma onda de outras revoluções em outra. Uma guerra aqui pode levar a um novo governo lá. Nossa história é cheia destes fatos. O resultado disso é que muito do nosso mundo, nos povos que existem aqui e as nações que eles fundaram, são intrinsecamente relacionados.
Ao longo da história da Humanidade povos migraram de um lado para o outro por diversos motivos. Uma falta de comida em um lugar força um povo a seguir em uma certa direção, pondo-o em conflito com outro povo que já estava estabelecido ali. Esse segundo povo, derrotado, foge para longe, esbarrando com as fronteiras de um crescente império que logo se vê em dificuldades para lidar com essa migração. Isso aconteceu diversas vezes na história da Humanidade, e é apontado como um dos motivos para a queda do Império Romano. Sem querer entrar em detalhes históricos que não são relevantes a este artigo, em certo ponto Roma começou a aceitar a entrada de “bárbaros” vindos do leste (expulsos de suas terras por outros povos mais ao leste), de forma a torná-los bucha de canhão (e para reduzir os riscos de conflito nas fronteiras). Com o passar dos anos esses povos foram integrados (mas não totalmente) ao Império. Até a queda do Império até mesmo generais das legiões eram “bárbaros”, o que certamente levou a uma mudança cultural e social até mesmo na capital milenar do império.
A queda do Império Romano levou a Europa e o norte da África a uma situação complicada. Surgiu um vácuo de poder onde antes sempre existiu Roma. A descentralização levou ao surgimento de reinos independentes que em muito tem a ver com os atuais países europeus, muitos deles até hoje usando línguas derivadas do latim romano.
Lógico que existem outros reflexos, e não são só as ruínas deixadas para trás. Regiões inteiras foram “pacificadas”. Leis em uso até hoje são baseadas em conceitos Romanos. A organização governamental e militar também deve muito à Roma Antiga.
Mas Roma é apenas um exemplo. Existiram outros impérios e outros conquistadores cujas ações promoveram reflexos duradouros na história da Humanidade.
Tomemos outro exemplo. A maioria das pessoas que pensam sobre o Egito Antigo pensam em pirâmides, múmias e Cleópatra. Talvez pense em Tutancâmon e deuses com cabeças de animais. Mas o que a maioria das pessoas esquece (ou não sabe) é que esse Egito Antigo durou 3.000 anos. Pense em tudo que aconteceu nos últimos 2.000 anos. Acho que dá para ter uma ideia.
As Grandes Pirâmides foram construídas lá atrás, bem no início, e não foram construídas por escravos (nem por alienígenas). Ao longo do tempo conquistou e foi conquistado. Conquistado inclusive pelos Romanos e, antes, por Alexandre o Grande.
Alexandre colocou a Macedônia no mapa. Antes inimiga das cidades-estado Gregas, tornou-se ‘dona do mundo’, indo do Egito até a Índia, deixando dezenas de “Alexandrias” pelo caminho. No Egito “fundou” uma dinastia ao colocar seu amigo e general Ptolomeu no comando. A última descendente de Ptolomeu? Cleópatra, que resistiu ao domínio Romano que veio décadas depois de Alexandre. Foi, inclusive, durante a Dinastia Ptolomaica que a língua oficial do Egito se tornou o grego, e o porque de, quase dois mil anos depois, quando Napoleão foi ao Egito, a Pedra de Roseta foi encontrada. Sim, a tal pedra com um édito oficial em Grego e Egípcio, a mesma que permitiu que hoje saibamos traduzir hieróglifos.Podemos ir mais longe. A Península Ibérica (onde mais tarde surgiria Portugal e Espanha) foram domínios muçulmanos por séculos. Sinais disso ainda podem ser encontrados hoje na arquitetura e na culinária local. A conquista aconteceu em 711, quando o reino dos Visigodos (eles descendentes de bárbaros que entraram no Império Romano alguns parágrafos antes), foi conquistado por bérberes vindos do norte da África. E a região permaneceu em mãos muçulmanas por séculos até que a Igreja Católica (Romana, antes um secto judeu perseguido, tornada religião oficial do Império Romano pouco antes de sua queda) colocou a religião como motivação para suas Cruzadas. A Reconquista da Península Ibérica levou à formação de Portugal e Espanha, que eventualmente se tornou rival de outra ex-província Romana, a Inglaterra, e levou não só à descoberta, mas também a colonização da América.
E existe mais, claro, tanto diretamente relacionado à Roma quando indiretamente relacionado. Temos Genghis Khan vindo da Ásia, a formação do Império Chinês (tão longo e tão diverso quando o Egito Antigo), os reinos e impérios do Oriente Médio, os reinos Africanos e Ameríndios, a polarização do mundo entre reinos cristãos e muçulmanos e a expansão mercantil europeias...
Mas acho que o ponto já está entendido: nenhum reino, nenhum país, nenhum povo é uma bolha. Tudo está interligado.
Nos próximos artigos falarei de coisas mais específicas: religião, história, cultura, diplomacia, guerras.
Até lá.
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