Na minha época de faculdade (e o tempo entre a faculdade de Desenho Industrial e a de História) e joguei muito RPG com amigos que eu fiz na época. Diferente da época do colégio (quando valia tudo, das ideias mais esdrúxulas, danem-se as regras), tínhamos muito mais conhecimento (e vontade de criticar e discutir). Vez ou outra alguém jogava a acusação “Isso não é crível”, rapidamente rebatível por algo tipo “mas você quer veracidade num mundo onde pessoas jogam bolas de fogo em dragões falantes?”
Será que ter dragões, ou alienígenas ou fadas faz com que uma história não precise ser crível?
Claro que não. Mas, péra... então, como funciona isso?
Todo mundo segue suas regras. A questão é estabelecê-las. E, em termos de ficção especulativa (fantasia, ficção científica e terror), magia e tecnologia são geralmente os parâmetros a se tomar cuidado. Não tem problema se seu personagem dar uma de louco e pular de uma janela para cair em cima do dragão com uma faca (contanto que isso faça sentido para o personagem naquele momento), mas não venha depois dizer que dragões ficam grávidos se no início da história você disse que eles colocam ovos.
A melhor forma de explicar isso é com um exemplo prático. Pensemos em viagem mais rápida do que a luz (conhecido pela sigla FTL, faster than light) e três exemplos de como ela funciona em três mundos diferentes.
Em Star Wars a viagem não é instantânea. A regra diz que uma nave precisa ter um “motor de salto”, deve estar longe de um campo gravitacional forte (uma estrela, um planeta, etc) e necessita de cálculos que em geral são feitos por uma pessoa treinada (mas podem ser feitas por droids programados para isso, como os astromechs). Além disso, a regra estabelece que a viagem não é automática. A nave viagem a uma velocidade muito rápida na direção da coordenada pré-estabelecida, mas ela pode levar dias ou mesmo semanas, nas quais os tripulantes moram dentro da nave.
Já nos jogos de tabuleiro, RPG e video game Battletech / Mechwarrior a viagem é, sim, instantânea, mas tem ainda suas limitações. O salto depende de uma tecnologia antiga, mas cara (tanto em termos de produção quanto de uso). Uma Jumpship (ou Warship, a versão militar) precisa ficar fora do plano da elíptica (o plano onde a maioria dos planetas orbita uma estrela) devido à fragilidade da tal tecnologia. A energia necessária é tão grande que a nave precisa abrir uma vela solar e ficar dias ou semanas (dependendo do tamanho e tipo da estrela) recarregando as baterias.
Mas porque isso é importante?
Veja bem, a definição de uma regra dá credibilidade ao seu universo ficcional, ajuda a criar material de apoio (arte e game design, por exemplo), e enredos para as histórias.
O fato de que a viagem em Star Wars leva tempo diz que a maioria das naves precisam ser quase com uma casa, e incluir entretenimento, como o jogo de “xadrez” da Millenium Falcon. Também leva a situações da história: porque Han Solo não foge logo que sai de Hoth ou após entrar no campo de asteroides em O Império Contra-ataca. Mais até: permite nos video games a criação do “Interdictor”, uma nave imperial usada para arrancar naves voando mais rápida do que a luz ao gerar “sombras de gravidade” onde não existiam planetas.
Babylon 5 também aproveita da mesma forma. A estação é importante por estar numa espécie de nexo entre estrelas controladas por diferentes governos alienígenas, o que o torna importante tanto diplomaticamente quanto comercialmente. Em determinados episódios a regra é explorada como enredo: personagens se perdem no hiperespaço, uma frota se aproxima, mas os protagonistas tem tempo de se preparar, etc.
Quanto à Battletech/Mechwarrior? A regra acaba definindo a necessidade das Dropships, aquelas naves (geralmente, mas nem sempre) esféricas que trazem tropas e mechs para um planeta. E o tempo entre a Jumpship e o planeta, e o tempo necessário para uma Jumpship recarregar as baterias antes de saltar novamente, definem elementos de estratégia e enredo (além de regras no jogo de tabuleiro).
Isso não acontece só com tecnologia. Mundos de fantasia também possuem regras que devem ser seguidas. O que é magia? Como ela funciona? O que ela faz? Ela possui algum tipo de efeito negativo? As respostas a essas perguntas são essenciais. Por exemplo, se a magia faz de tudo, é fácil de aprender e não causa qualquer tipo de efeito negativo, o que impede o mundo de ser repleto de magos e itens mágicos? Os mundos antigos de Dungeons & Dragons tinham esse problema. Enquanto mundos como Dragonlance e Greyhawk não eram exatamente de alta magia (em comparação a, por exemplo, Forgotten Realms), as regras de jogo eram praticamente as mesmas. E essas regras iam contra o conceito do universo, dizendo que o “custo” de ser um mago era tão somente ter poucos pontos de vida. E se a magia é tão simples e acessível como dizem as regras, porque o mundo continua parecendo um pastiche medieval? Segundo as regras de D&D, fazer luz ou criar uma plataforma flutuante qualquer mago meia-boca é capaz de fazer. Então por que ela não deveria ser comum?
Eberron foi o primeiro cenário de D&D que explorou a ideia do jeito “certo”. Se você não conhece esse cenário, dê uma olhada. Nele a magia é, sim, abundante como dizem as regras do jogo, e isso é agregado ao cenário. Há raças voltadas para esse conceito, há cidades iluminadas por tochas infinitas onde plataformas flutuantes levam visitantes até o alto de torres impossíveis.
E quanto tudo se mistura?
A ficção fantástica é pouco conhecida hoje em dia, apesar de que parece estar retornando. O jogo online Skyforge (ainda a ser lançado) e o RPG ganhados do Ennie desse ano Numenera exploram esse conceito da ficção científica fantástica. Nela o que existe é, sim tecnologia avançada, mas tão avançada que foge à compreensão. Vale a já batida frase do Arthur C. Clarke: “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Numenera faz isso de forma espetacular. Seu mundo é a Terra, mas a Terra daqui a milhões de anos, após várias civilizações surgirem e caírem. Tecnicamente tudo é possível e a explicação científica falta aqui e ali. Mas tudo bem, porque a regra é exatamente a de que a ciência é tão avançada que ela é incompreensível para os atuais habitantes do mundo. Nele “magos” controlam nuvens de nanobôs sem fazer ideia de que se tratam de artefatos mecânicos microscópicos. Alienígenas surgem de outras dimensões, em conceito idênticos aos demônios de um RPG qualquer de fantasia, mas com todo um contexto diferente.
Bom, o texto já está longo, então vamos para o exercício!
Vou usar o exemplo do escritor Brandon Sanderson novamente. Ele é conhecido no Brasil pelos livros Elantris e Mistborn (mas autor de uma penca de outros livros) e foi referido no artigo anterior. Sanderson fala sobre criar-se um único sistema de magia primeiro e explorá-lo ao limite. Por exemplo, digamos que em seu mundo a magia é baseada em música: ela acontece com base na combinação de notas musicais, tons, etc. É uma fórmula mágica que exige treinamento e prática. Um erro ao cantar a magia pode fazer com que o efeito mágico seja completamente diferente (e catastrófico). Pelo menos assim os bardos não serão considerados tão inúteis (mas os péssimos cantores serão tratados com medo ou raiva).
E no seu mundo? Pense numa regra básica, seja de magia ou tecnologia, e desenvolva-a. Pense em quais são os custos dessa regra, quais seus reflexos na sociedade. Aqueles que a conhecem e usam são diferentes de que forma? Como são tratados pelos outros? Que variações você consegue fazer dessa regra sem quebrá-la?
Semana que vem: povos e nações.
Atrasado vale também né?
ResponderExcluircomecei a ler sua série de artigos sobre worldbuilding ontem e a quantidade de informações transmitidas é incrível.
Ótimas explanações e exemplificações sobre este e os demais tópicos.
Será que tem algumas referências - atuais ou não - sobre o assunto?
Abraço
Obrigado, Bruno! Bom saber que os artigos ainda são úteis mesmo depois de tanto tempo. Ainda penso e voltar a produzir esse conteúdo, só não sei em que formato ainda.
ResponderExcluirDe referências, depende um pouco do tipo de coisa que você quer. Se você quer um embasamento mais científico, o livro Worldbuilding do Stephen Gillet (https://www.amazon.com/World-Building-Science-Fiction-Writing-Stephen/dp/158297134X)
Outro que tem umas dicas muito boas é o How to write Science fiction and fantasy do Scott Card (https://www.amazon.com/How-Write-Science-Fiction-Fantasy/dp/158297103X)
Agora, esses dois são livros mais antigos, então pode ser que existam outros mais modernos que eu não conheço.
Mas ouvi falar MUITO bem de um "novo" do Jeff VanderMeer chamado Wonderbook (https://www.amazon.com/Wonderbook-Illustrated-Creating-Imaginative-Fiction/dp/1419704427/) Ainda preciso comprar esse aí, mas só tenho ouvido elogios
Fora isso, sempre tem algum livro ou site falando de assuntos mais específicos.
Espero que tenha ajudado!
Abs