Vou começar esse artigo explicando logo porque isso é importante usando dois exemplos.
O primeiro: lembro de ter jogado RPG de mesa uma vez com um sujeito (cujo nome vou omitir para evitar humilhação) em que, em dado momento de uma exploração de uma cripta antiquíssima, nos deparamos com um urso.
Numa cripta fechada há mil anos.
Quando perguntamos como diabos ele vivia lá o tal sujeiro olhou pro caderno de anotações, como se a explicação fosse magicamente surgir ali, e disse “Ué, ele come os cadáveres.”
Ok.
Outro exemplo, o filme Pitch Black (Eclipse Mortal, o primeiro do personagem Vin Diesel). Então você tem uma lua de um gigante gasoso iluminado constantemente por 3 sóis. De 22 em 22 anos acontece um eclipse (sabe-se lá como. Eu ainda não entendi a lógica astronômica disso), o planeta inteiro fica num eclipse que dura meses. Nesse período uma horda de monstros do subterrâneo vai pra superfície e sai devorando tudo.
Se não existe vida na superfície, porque eles fazem isso? Se eles vivem no subterrâneo, porque tem asas e voam? Se eles saem tão desesperados de fome pra superfície é porque a comida no subterrâneo é escassa, então como eles sobrevivem durante os outros 22 anos do ciclo?
As melhores histórias são aquelas que amarram o universo em que elas acontecem com a trama. A partir do momento em que sua história poderia se passar em qualquer outro mundo, porque eu deveria me importar com o seu? E a criação de uma fauna e flora bem feitas podem dar essa amarra que falta.
Um exemplo da literatura é a série The Stormlight Archives do Brandon Sanderson, começando com o calhamaço Way of Kings. Sanderson é famoso por construir universos interessantes (e detalhados) para seus livros e vai além do normal nesta série. Neste universo artrópodes gigantes vivem na superfície, servindo tanto de montaria (cavalos existem, mas são raríssimos) como de predadores (caçadas aos “caranguejos gigantes” são eventos importantíssimos). E vai mais: o próprio cenário parece o fundo do mar. As “plantas” na verdade lembram anêmonas, mexilhões e afins. São plantas que em muito lembram pedras que se abrem e se recolhem para proteção. O motivo? Neste universo existem poderosas tempestades frequentes que arrasam tudo pelo caminho. O único jeito da vegetação sobreviver nessas condições e se recolhendo para dentro de uma casca.
Mas o que é crível? Vamos de novo olhar o nosso próprio mundo. Por exemplo, você sabia que quando os Europeus chegaram à América não existiam cavalos, mas que há fósseis de ancestrais próximos do cavalo na América do Norte? Ou seja, em algum momento milênios atrás cavalos primitivos vieram para a América e conviveram conosco (afinal a primeira leva de humanos modernos chegou a América do Norte uns 60.000 anos atrás), mas foram extintos (segundo algumas evidências, caçados pelos nossos parentes distantes que nunca aprenderam a domesticá-los).
E você sabia que as Grandes Pirâmides do Egito já tinham uns 1.000 anos quando o último mamute morreu na Sibéria? De repente aquele filme 10.000 AC não parece TÃO tosco assim, né?
Falando em mamutes, e os elefantas anões da Ilha de Flores, que eu mencionei no outro artigo? Espécies maiores ou menores dos animais que conhecemos hoje em dia são bastante comuns. Uma vez já existiram tubarões gigantes, ursos gigantes, até preguiças gigantes. Mas manter um predador do tamanho de um megalodon não é fácil. Com o tempo, a espécie deixa de ser viável. Se você resolver que seu mundo é cheio de monstros gigantes, lembre-se de que eles precisam comer muito para se sustentar como uma espécie!
Não é muito diferente no caso dos herbívoros, como a preguiça gigante. Ser grande é útil como defesa apenas quando não existem predadores capazes de derrubá-lo. Coincidência ou não, as preguiças gigantes foram extintas mais ou menos na mesma época em que o ser humano expandiu América a dentro.
Agora, qual é a relação da existência desses animais e plantas no seu mundo? Como o ser humano (ou seja lá qual for a espécie da região) se relaciona com esses animais? No nosso mundo, homens caçam em busca de recursos (comida, pele, marfim, etc), domesticam (para montaria, proteção ou força de trabalho) ou matam para proteger a si e seus pertences (como os próprios animais domesticados). Esquimós usavam ossos de baleia para construir navios e chifres de narval como lanças. Em algumas ilhas do Pacífico, guerreiros faziam “espadas” prendendo dentes de tubarão em pedaços de madeira. Óleo de baleia foi combustível para lanternas por muito tempo, e o suco de certas frutas ainda hoje são base para tinturas. Inclusive, outra nota importante: o comércio no Meditarrâneo durante a Antiguidade girava muito em torno de um caramujo que dava origem a uma tintura roxa associada à realeza. Os Fenícios vendiam essa tintura para outros povos da região (inclusive seu nome é derivado da tal cor).
E como a fauna e a flora relacionam-se entre si? Final Fantasy é famoso pelos seus Chocobos, os pássaros gigantes que são usados de montaria. Acho a ideia ótima, até porque existiam pássaros semelhantes, os moa, até bem recentemente. Me faz lembrar do Carakiller, um pássaro hipotético da série de documentários The Future is Wild, onde cientistas imaginam o mundo no futuro distante. Esses animais teriam evoluído em uma futura savana onde uma vez existiu a Floresta Amazônica, já desertificada. Sem predadores de grande porte na região, o carakiller acaba assumindo esse nicho.
Exerciciozinho? Pegue um animal fantástico qualquer. Dragão, unicórnio, troll, sei lá. Imagine como ele funcionaria no nosso mundo. Como seria sua interação com outros animais e plantas? E com a sociedade local? Qual o efeito de sua existência para o resto do mundo? Só pare quando fazer sentido.
No próximo artigo vamos pensar em magia, tecnologia e como essas duas coisas interagem.
Em ficção especulativa também podemos mudar a cor das plantas se a cor da estrela mudar e não vi nenhuma franquia fazer essa adaptação.
ResponderExcluirSe uma estrela emite mais na faixa do vermelho, as plantas de um planeta na faixa habitável precisarão absorver toda a energia disponível e, assim, teriam que ser pretas. Plantas em um planeta orbitando uma gigante azul sofreriam ataques dos pulsos ultravioleta e teriam que ser aquáticas. São detalhes como estes que fazem os enredos ricos e verossímeis.
=D
momentumsaga.com
Pois é. A ideia das plantas pretas num sistema de anã vermelha eu já vi em algum lugar anos atrás... ou talvez tenha sido uma referência no livro World-building do Stephen Gillett (vale a leitura para quem quer uma visão um pouco mais científica). Acho até que cheguei a usar em algum conto antigo.
ResponderExcluirhttp://www.amazon.com/World-Building-Science-Fiction-Writing-Stephen/dp/158297134X
Acho essencial a coerência dentro do mundo criado. Se isso for observado, vale o que Tolkien dizia sobre a razão: quanto mais conhecimento se tem sobre o factual, maior é a capacidade inventiva. Essa ideia da anã vermelha, por exemplo, eu realmente não conhecia. Dá até certo gosto ler uma obra que vai acrescentar mais do que um mundo fantástico.
ResponderExcluirMuito bom seu texto!
Eu tava realmente atrás de blogs que falassem sobre construção de histórias, da "arte" em si, não de produtos. Felizmente, achei o seu. :D
Opa, fico muito feliz em ler isso, Victor! Me incentiva a continuar com o projeto.
ResponderExcluirOlá, Beraldo, conheci seu blog há pouco tempo e achei muito interessante sua compreensão da construção do mundo fictício. Contudo, tenho uma pergunta: você acha que esse tipo de exercícios deve ser feito rompendo com a cosmovisão do espaço ficcional que o autor tem de sua obra ou não? Exemplo: um autor que baseia seus vampiros sob os casos dos corpos incorruptos da Igreja faria uma força sobre humana para enxergá-los como em Blade. Ou ainda, autores que seguem uma fantasia com laços mitológicos a Tolkien teriam um desconforto para criar um mundo a C S Lewis.
ResponderExcluirObrigado.
Olha, todo universo ficcional bem feito é bem amarrado. Se a 'regra' que você criou para seu universo impede algo de acontecer, provavelmente essa coisa deve ser evitada.
ResponderExcluirMAS eu acredito que o exercício serve em especial para tirar o autor do lugar comum. O mundo está cheio de versões da ficção de Tolkien ou de vampiros semelhantes. Como tornar isso diferente, mas ao mesmo tempo reconhecível?
O exercício, de criar algo que foge do que você tinha em mente originalmente, pode ajudar a ver seu mundo de uma perspectiva diferente, mesmo que o exercício em si seja só isso: um exercício, e o resultado final não seja usado no seu mundo ficcional. O que você ganha é a possibilidade de expandir sua visão (e seu mundo) criando algo novo.