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domingo, 10 de agosto de 2014

Construindo mundos: Múltiplas raças

Já faz tempo que penso em escrever uma série de artigos sobre a construção de mundos, seja para livros, jogos, RPGs ou insanidade temporária. Hoje tive um estalo enquanto escrevia um documento (que provavelmente nunca vai ser divulgado) detalhando a evolução das espécies e das culturas do mundo de fantasia onde se passa minha nova série de livros, Eternos, que começará a sair pela Editora Draco muito em breve.

É comum encontrar mundos de fantasia onde existem diversas espécies (ou ‘raças’, nos termos mais RPGísticos). Humanos convivem com elfos, anões, orcs, hobbits/halflings, homens-lagarto, gnomos, gigantes, etc. As explicações para essas inúmeras raças variam de cenário para cenário. Em RPG e jogos de computador geralmente existe uma explicação mitológica que envolve múltiplos deuses criando raças à sua imagem e semelhança, eventos místicos traumáticos como o surgimento de raças por manipulação mágica, etc. Enquanto eu nunca reclamei disso enquanto jogava Dragonlance, Forgotten Realms e etc, há alguns anos que eu tenho focado em cria uma fantasia mais realista. Não que eu ache que preciso apresentar ao leitor a explicação científica de tudo (vide o tal texto que provavelmente jamais sairá do meu computador), mas eu acredito que ter esse conhecimento oculto ajuda a basear decisões futuras sobre a construção do mundo, das histórias e, em se tratando de jogos, das regras.


Como qualquer criação, essa começa com uma pesquisa profunda (coisa que eu adoro), passando por livros mil, artigos científicos, internet, mapas, etc. E logo você começa a se tocar de que talvez um mundo de fantasia com múltiplas raças não seja algo assim tão fantástico.

Falemos da Terra, a única base científica que temos para usar como exemplo. Você sabia que pelo menos três espécies humanas conviveram por alguns milênios?

Nós sabemos que os ancestrais do homem moderno surgiram na África. Olá, Lucy! E a maioria ficou por lá mesmo, mas nem todos. Em algum ponto por volta de 500.000 anos atrás (sim, vários zeros), um dos nossos ancestrais saíram da África e não voltaram. Alguns, não todos!

O resultado disso é que esses sujeitos que foram para a Eurásia antes dos nossos parentes mais distantes acabaram evoluindo em outro ambiente, com outras necessidades e se tornaram algo um pouco diferente. Já ouvi falar do Homem de Neandertal?

A cultura popular diz que o Homem de Neandertal é um ancestral do homem moderno, um homem das cavernas, mas a história não é bem assim. O neandertal evoluiu de um ramo separado da família Homo bem antes do surgimento do homem moderno e se desenvolveu para o ambiente da Eurásia em tempos de Era do Gelo. O neandertal era maior, mais robusto, com cabeça maior (apesar de ter um cérebro proporcionalmente menor do que o do homem moderno), talvez até mais peludo. É só olhar a reconstituição moderna de um neandertal que você perceberá que eles não eram exatamente iguais a nós. Quando nossos ancestrais chegaram a Eurásia milênios depois, o neandertal já havia se espalhado por boa parte da região (apesar de aparentemente nunca ter voltado para a África). Mas o fim da Era do Gelo parece ter tornado as coisas difíceis para nossos amigos mais adaptados ao frio. Apesar de termos convivido com eles na Eurásia por dezenas de milênios, a verdade é que a população neandertal já estava em declínio na época e eventualmente desapareceu por volta de 25.000 anos atrás (bom, não exatamente... já volto aí).

Mas neandertais não eram os únicos. Alguns poucos anos atrás os restos de humanoides foram encontrados em uma caverna da Sibéria. Depois de testes de DNA foi descoberto que não eram nem humanos nem neandertais. A nova espécie foi chamada Homem de Denisova, e parece ser um descendente do neandertal (assim como nós somos descendentes dos homens que esbarraram com os neandertais depois de sair da África). Pouco se sabe sobre os denisova, até porque não encontraram ainda nenhum esqueleto inteiro, mas já temos certeza que existiram na mesma época que nossos ancestrais e os neandertais. E eles sumiram também. Ou quase.


Outra coisa comum nos mundos de fantasia é o cruzamento de raças, especialmente humanos e elfos. O meio-elfo e o meio-orc são figurinhas clássicas de muitos livros, RPGs e jogos e já levantaram muitas sobrancelhas mais científicas a respeito. A final, cruzamento entre espécies é possível?

Pois bem, saiba que boa parte dos humanos modernos não-africanos tem entre 2 e 4% de DNA neandertal, e que boa parte dos humanos do Sudeste Asiático, Austrália e Pacífico tem 2 a 4% de DNA denisova. Ou seja, nossos ancestrais não só conviveram com seus primos distantes, mas compartilharam mais do que suas cavernas. E enquanto podem vir teorias de estupro como justificativa (afinal de contas há teorias antigas de que os neandertais foram dizimados pelos nossos ancestrais), a porcentagem alta e a existência de ossadas de híbridos humano-neandertal e neandertal-denisova tendem a indicar que, não, não foi só pelo sexo sem consentimento que nós viramos uma única espécie. Mas esse foi, claro, um processo longo que levou alguns milênios.

Esses não são os únicos exemplos de diferentes espécies humanas convivendo. Em 2003 os restos de uma espécie de “hobbit” foram encontrados em uma ilha da Indonésia. O Homo Floresiensis (da Ilha de Flores) tinha cerca de 1 metro de altura e conviva com elefantes em miniatura e pássaros gigantes (imagine um avestruz carnívoro com garras afiadas). Acha que faz muito tempo? Acredita-se que foram extintos 12.000 anos atrás, mais ou menos na mesma época em que nós, o humano moderno, nos tornávamos uma sociedade agrária no Oriente Médio. As evidências inclusive aponta que os florensiences e nós convivemos em Flores por algum tempo.

“Ah, mas Beraldo, no caso são só pigmeus!”

Não. Pigmeus são ramos do humano moderno em que os adultos não passam de um metro e meio. São humanos em todos os sentidos, mas possuem baixa estatura. Já o florensience, ah, amigo, esse aí tem mais traços semelhantes a um chimpanzé do que ao humano moderno.

Podemos aplicar também o que sabemos sobre evolução divergente. Lembra da teoria de Darwin, a história dos pássaros com bicos diferentes para se adaptar as necessidades do ambiente? As teorias indicam que foi daí que surgiu o neandertal (para sobreviver ao ambiente mais frio da Eurásia durante a última Era do Gelo), e há quem diga que espécies “anãs” (como os próprios florensiences) tornam-se pequenos quando vivendo em ambientes pequenos com poucos recursos, como uma ilha (vide elefantes anões).


Sabido isso, vamos brincar: e se em seu mundo parte de um ramo de um ancestral do ser humano tivesse saído do seu “berço” antes do que aconteceu no nosso mundo? E se, por exemplo, o Homo Habilis, nossos parentes mais peludos, tivessem deixado a África e expandido pela Ásia? E se tivessem cruzado para a América pelo Estreito de Bering, isolados do lado de cá por algumas dezenas de milênios? Será que os europeus encontrariam uma civilização pseudo-Asteca de homens-macacos? E se esse povo tivesse sua própria civilização evoluindo em separado, como seria?

É possível imaginar os anões e hobbits da fantasia como ramos do ser humano, o primeiro tendo por algum motivo migrado para o subsolo (talvez devido a um inverno muito rigoroso em uma região de cavernas e termais subterrâneas?), ou que o segundo vivessem em ilhas isoladas até poucos milênios atrás. E os elfos? Elfos geralmente possuem explicações bastante místicas em torno da sua existência, uma herança de Tolkien e a mitologia celta na qual ele se baseou. Elfos poderiam ser descendentes de outros mundos onde as leis da física (e da evolução) simplesmente são diferentes. Sim, colocamos um pezinho na Ficção Científica. E daí? Aos olhos de um “homem medieval” alienígenas e fadas são praticamente a mesma coisa!

Vamos mais longe? E se o mesmo processo que levou à criação do homem moderno acontecesse com outra espécie? Seria viável? Existindo isolamento e condições, teoricamente é possível sim. Talvez uma espécie de homem-lagarto surja em um continente distante até então inalcançado pelo ser humano. E quem sabe que variações essa espécie pode ter?

“Cacete! Então você faz isso sempre que vai criar a história de um jogo novo?”

Claro que não. Na verdade só fiz isso uma vez, agora, porque quero fazer algo com a fundação complexa e robusta o suficiente para diversos outros produtos (livros, jogos, RPGs...). Jamais faria algo tão complexo para criar a história de um video game, por exemplo (a não ser que eu trabalhasse para a Bioware e fosse pago para isso), mas entender esses elementos podem ajudá-lo a construir mundos únicos, mas realistas, e ajudá-lo a fugir do lugar comum.

No próximo post falarei sobre outro elemento da criação de mundos: a fauna e flora.

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