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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Não existe conhecimento inútil

Uma das coisas que eu mais sinto falta dos meus 4+ anos de Hoplon são as pessoas com quem eu trabalhei lá. Não todas, claro! Mas existia um grupo que não só considerava colegas de trabalho, mas também amigos. Com o tempo alguns foram saindo da empresa. Outros ficaram depois da minha saída. Ainda mantenho contato com alguns deles.

Lá por volta de 2008 a equipe de Game Design do Taikodom era relativamente grande. A sala estava abarrotada com umas 10 cabeças num espaço que não comportava o número. No Verão o pobre ar condicionado sofria, regurgitando condensação antes de desfalecer e precisar ser revivido pelos técnicos. A sala estava sempre fechada por ordem do então Lead, sabe-se lá porquê. O interessante era que existia uma dinâmica legal naquela sala. Em grande parte éramos amigos, e isso refletia no nosso dia a dia.

Entre os membros da equipe existiam um trio que uma vez um dos outros GDs chamou de “Os três oráculos do inútil”. Eram um programador com propensão à trocadilhos infames e piadas altamente matemáticas que só ele entendia, um ex-jornalista conhecedor de tudo sobre todos os esportes e uma verdadeira gramática ambulante e eu, a enciclopédia dos fatos históricos e biológicos que ninguém se importava. Vez ou outra os três entravam numa de completar o outro com referências cada vez mais obscuras. O povo se divertia.

Agora, existe uma coisa interessante que se aprende com o tempo e que vale tanto para o escritor quanto para o game designer:

Não existe conhecimento inútil.

Absolutamente tudo que você puder absorver será relevante em algum momento da sua carreira. Conhecimento é uma ferramenta que tornará suas criações melhores, sejam elas literárias ou interativas. Eu vou além: digo que isso é importante também para o artista. Bobby Chiu, famoso ilustrador que trabalha tanto para a indústria de jogos quanto para o cinema menciona que, ao criar uma nova criatura, é sempre importante entender sua história e seu comportamento. Se você não sabe como ele “funciona”, e não tem referências do mundo real para suportá-la, como fará uma criatura crível?

Já saí de enrascadas no game design lembrando de algo que joguei ou vi anos antes. Uma referência obscura (nem sempre de jogo) que acabou sendo a solução para um projeto. Não é uma questão de encontrar a peça certa para encaixar no buraco que falta do quebra-cabeças. Muitas vezes é como encontrar um rabisco antigo e perceber que ele pode ser refeito e adaptado a um novo quadro.

Acho que ficou claro que isso serve para tudo quanto é tipo de coisa, mas vou focar num aspecto específico: a construção de mundos. Note que aqui ainda continua valendo para tudo o que falei antes: seja você um romancista, um designer de RPGs, um video game designer ou mesmo um ilustrador. O ponto-chave aqui é o detalhe. Detalhes fazem a diferença.

Já ouviu a expressão “lá na Cochinchina?” se referindo a algo longe? Talvez você até já tenha dito isso. Mas saber de onde ela vem?

Cochinchina era o nome dado lá pelo século XVI pelos Portugueses à ponta do que é hoje o Vietnã. Era um importante porto de parada entre Portugal e suas colônias no Extremo Oriente, como Macau e, sim, era longe pra burro (de onde vem ESSA expressão?).

E a origem do termo “você”? Talvez você já saiba. É uma corruptela de Vossa Mercê, o termo formal para ‘tu’ na corte Portuguesa da mesma época. Com o tempo o termo foi se transformando em Vosmecê, você e, pelo jeito, já está virando só vc mesmo. O mesmo vale para o espanhol com usted.

“Cara, mas pra que isso é importante?”

Aí é que está. Numa narrativa, detalhes são importantes. Expressões linguísticas existem porque são moldadas pela história. Cochinchina e Você são coisas clássicas no Brasil exatamente porque por séculos fomos uma colônia portuguesa. A própria natureza do Brasil, de colônia isolada onde só vinham escravos, aventureiros e aqueles que de alguma forma desagradaram a Coroa, sua evolução ao se tornar capital de um reino europeu nas Américas quando Napoleão invadiu Portugal em 1808, etc, são o que levaram o país a ser o que é hoje.

Vamos procurar em outros lugares. Você sabia que boa parte dos xingamentos em mandarim reference a gases? O motivo? A China foi (e continua sendo) em grande parte rural. Para um povo que vive da terra o esterco é útil, os gases, não. Chamar alguém de “peido” é chamar alguém de inútil. A “merda” pelo menos serve para adubar a terra.

E o inglês “bastard”? Não existe uma tradução adequada e com o mesmo impacto em português. Acho que podemos imaginar que o termo tem peso na sua língua de origem exatamente porque “bastardos” eram uma realidade na monarquia (ainda existente) na Europa Anglo-saxã. Ser um bastardo era ser um estorvo (e um risco) para uma família nobre. Mas não existiam bastardos na nobre latina (Portuguesa, Espanhola, Francesas, etc)? Com certeza. Mas talvez o ponto de vista era diferente. Com certeza os povos latinos vêem o sexo de uma forma muito mais natural do que os anglo-saxões.

Agora pense em um livro, filme ou jogo que você gosta. Você consegue lembrar detalhes como esse? É possível que não. Esses detalhes não são feitos para serem percebidos conscientemente, mas para serem absorvidos, dando a uma história mais credibilidade e profundidade aparente. No entanto, vez ou outra alguma expressão ganha força.

Winter is coming” (O Inverno está chegando) é uma expressão importante e muito repetida no universo de Game of Thrones, seja nos livros ou na TV. A expressão é resultado do fato de que as estações do ano são erráticas e podem durar anos. Para o povo do Norte, acostumado ao Inverno rigoroso, é sempre necessário estar preparado para um Inverno prolongado sem acesso à comida. Claro que ainda existem outros contextos. O Inverno pode representar um período difícil ao qual deve-se estar sempre preparado.

O Universo Expandido de Star Wars também tem algumas referências interessantes. “Sithspawn” é um xingamento forte. Não sei como foi traduzido (se foi), mas seria algo como “cria de um Sith”. Faz sentido apenas se você compreender que, no universo Star Wars, os Sith são a epítome da maldade, o oposto do conceito Jedi que permeia o universo. O mesmo vale para a expressão “Que a Força esteja com você” substituindo “Boa sorte”. Dá até para voltar para "nossa Terra" e mencionar a diferença entre o "Saúde" brasileiro e o "God bless you" (Deus o abençoe) americano, ambos respostas para alguém espirrando.

Firefly é um outro exemplo espetacular disso, onde xingamentos são feitos em Madarim como reflexo da colonização do espaço como um conflito entre Anglo-saxões e Chineses.

Claro que isso não fica apenas nas expressões. Um personagem ou uma cidade não surgem do vácuo. Eles têm uma história que levou ao ponto em que estão. Por que Altair, protagonista do primeiro Assassin’s Creed, se veste com aquela roupa? O que aquela roupa conta sobre ele e o mundo em que vive? O que Megaton, a cidade em Fallout 3, tem a nos contar sobre sua história simplesmente através do visual?

Quando eu entro em uma nova cidade, seja ela nas páginas de um livro, na tela da TV ou na minha imaginação, os detalhes me contarão muito mais sobre ela do que qualquer guia turístico.

Esses dias, durante o Brazilian Independent Games Festival um colega game designer perguntou, meio que me provocando, porque diabos os Portugueses resolveram fundar o Rio de Janeiro, capital, num lugar tão quente. A resposta está lá em cima: Napoleão. E essa história é visível na própria geografia urbana da cidade, com o centro cheio de prédios antigos, os bairros nobres da Zona Sul, os casarões de Laranjeiras e Santa Tereza, até os cortiços e favelas encontrados em toda a parte.


Por que existe um Arco do Triunfo em Paris? E obeliscos Egípcios em Londres? Por que algumas cidades da Espanha têm cara de Oriente Médio? Quem colocou aquelas estátuas de pedra gigantes na Ilha de Páscoa?

Bom, acho que você entendeu a ideia.

Agora pense: de que forma você pode tornar seu trabalho mais verossímil? Que detalhes podem fazer a diferença para você?

Mãos à obra.

Um comentário:

  1. Longe pra burro porque se você tentar ir de burro, antes do burro chegar ele empaca, ao contrário dos cavalos, que são mais obedientes, e continuam mesmo depois de exaustos. Por isso se consegue matar um cavalo de exaustão, mas dificilmente se mata um burro disso. Mais um conhecimento inútil procê. :P

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