Eu tenho miopia e astigmatismo. Em termos simples, isso significa que eu não enxergo lhufas de longe. Tá, mais ou menos. Eu não consigo ler de longe, muito menos perceber detalhes. Tenho isso desde sabe-se lá quando. Em algum momento alguém percebeu e por volta dos 12 anos eu comecei a usar óculos, uma coisa azul e transparente terrível que era moda no início dos anos 90. Obviamente algum tempo depois esses óculos se quebraram.
Acabei ficando um tempo sem óculos. Não me incomodava tanto. Acabei de acostumando a ver o mundo embaçado, sem detalhes a partir de uma certa distância. O engraçado foi que acabei aprendendo a conviver com isso ao ponto em que conseguia reconhecer pessoas à distância, talvez pela silhueta, talvez pelo jeito de andar.
Óbvio que na adolescência eu não parava para pensar muito sobre isso. Pra mim era quase como se eu tivesse adquirido um superpoder, e isso era legal. Ponto.
Acabei voltando a usar óculos uns anos depois, para tirar a carteira de motorista. Foi aí que aconteceu uma coisa mágica.
Lembro que no mesmo dia eu ia para uma festa. No táxi, logo saindo de casa, olhei para cima para a Lua. Fiquei completamente embasbacado.
Deixe-me ilustrar (literalmente) o motivo.
Essa era a minha Lua antes:
Essa era minha Lua naquele momento:
Ele não fazia ideia da experiência que aquilo estava sendo pra mim.
Claro que eu já tinha usado óculos antes, entre uns 12 e 14 anos, mas moleque não presta atenção em detalhe de nada. Mas, como uns 18 anos, eu olhei pra cima e descobri que todo mundo consegue ver a superfície da lua a olho nu.
De novo, não parei para pensar no impacto que aquilo tinha para mim. Eu tinha 18 anos, e quem tem 18 anos não presta atenção no mundo. Foi só hoje, 17 anos depois, novamente dirigindo, que me toquei do impacto real de tudo isso.
O que eu vejo não é o que os outros veem. Meu ponto de vista não é o mesmo que o seu.
Eu sei que isso é óbvio, mas é impressionante como é fácil se esquecer disso. O ponto de vista não é influenciado apenas pela posição do observador. Tem a ver com a biologia, como a história, com a experiência vivida. Existem vários estudos sociais e psicológicos sobre como pessoas diferentes narram o mesmo evento de forma radicalmente diferente. Mesmo assim, há quem tenha dificuldade em dar um passo para trás e imaginar-se no lugar do outro.
“Ah, Beraldo, então no fundo esse é um post filosófico para promover a paz.”
Acho que a internet já está cheia desses. Meu ponto vai um pouco além, afinal esse blog é sobre criação, sobre ficção e sobre jogos.
Em um dos livros da série Mochileiro das Galáxias, do Douglas Adams, existe um planeta permanentemente coberto por uma névoa. A população nunca viu as estrelas e, consequentemente, nunca se questionou se existia alguma coisa ou alguém além. Lembro de nessa época pensar se uma espécie inteligente marinha não pensaria da mesma forma, afinal não pode ver o céu e, talvez para ela, a superfície sequer existisse. Não há o que instigar a exploração e a imaginação (pelo menos não naquela direção).
Acho que dá para ir mais além. Como seria uma pessoa que nasceu com a habilidade de perceber algo diferente de nós? Pensemos no Electro do filme Espetacular Homem Aranha 2, que tem a capacidade de ver emissões elétricas. Ou o novo filme da Scarlett Johansson (Lucy) onde a protagonista começa a ver até mesmo dados transmitidos no ar (o filme ainda não foi lançado quando escrevo isso, mas é o que me parece pelo trailer). De que forma isso afeta sua forma de perceber o mundo?
No jogo Alien vs. Predador da Rebellion (1999) você pode jogar como um Alien. Deixa de ser apenas a questão de usar uma visão diferente: sua movimentação agora é tridimensional. Existe um momento em que você para para perceber que, sim, você pode andar pelas paredes e pelo teto, e isso influencia como você percebe o mundo a sua volta.
Mais fundo ainda: Imagine uma espécie inteira que não tem olhos e "enxerga" o mundo de outra forma, talvez por vibrações ou correntes elétricas.
Eu tenho tentado explorar isso. Na ficção científica Véu da Verdade, os celonianos, nossos clássicos alienígenas Greys, têm poderes psíquicos naturais. O efeito disso é que raramente expressam emoções fisicamente. Ele não treme de medo, pois a sensação dele de medo é palpável na sua mente. Até mesmo sua linguagem é parcialmente sonora e parcialmente psíquica, da mesma forma que nós nos comunicamos tanto pela voz quanto por gestos.
Sabe um exercício interessante? Tente descrever uma cena completamente mundana, coisa do seu cotidiano, só que pelos olhos de um peixe. Fazer esse exercício me rendeu algumas cenas bem interessante no segundo livro da série Eternos, que sairá em breve pela Editora Draco. Como é para um peixe acostumado a viver debaixo d’água sentir o vento e a falta de sustentação provida pela água? Como é para um peixe habituado a viver em um coral vivo e colorido, sempre em movimento, caminhar pelas ruas de uma cidade de concreto? Alguns peixes também conseguem perceber correntes elétricas. Como isso influencia a forma com que um peixe vê e interage com o mundo?
Seja você escritor, game designer, jogador de RPG ou, sinceramente, qualquer outra coisa, o ponto vale a pena. Você só tem a ganhar com essa mudança de perspectiva.
Um lindo texto JMB. Faz tempo que tenho me interessado em desenvolver jogos para pessoas que não enxergam, já existe alguma coisa neste sentido, mas creio que falta ainda aos que os escrevem uma percepção maior do que é não enxergar. Já fiz experiências de desenvolvimento com pessoas sem visão e cheguei a algumas conclusões, mas ainda não consegui fazer algo nesta área. Talvez consiga um dia e seu texto me levou novamente a dar mais importância a isso.
ResponderExcluirOlha pelo lado bom, você não precisava ficar bebado para pegar as meninas feias =D
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