Alguns meses atrás escrevi um artigo sobre “paperstorming”, um termo que (eu acho que) inventei derivado do brainstorming. A ideia é que você começa a rabiscar ideias (no caso, de um jogo) em folhas em branco. O que você rabisca varia com o que você procura. Pode ser um personagem, uma cena, uma tela de jogo, mesmo um tabuleiro. (O artigo está na versão em inglês desse blog. Um dia eu traduzo!).
Como mencionei algumas semanas atrás, depois de ter a ideia superficial de Reinos Eternos, eu comecei a montar um mapa para desenvolver a ideia. Não sou o único que segue esse processo. Lembro de ter lido outros autores falando a mesma coisa (apesar de que, claro, não consigo lembrar de nenhum agora). Então pensei: “Por que não explicar sobre esse processo, inclusive o como eu acabei criando os mapas do livro?”
Depois de ter a forma geral do mapa como mencionei aqui em outro artigo, a ideia foi tentar fazer aquilo parecer real, descendo no nível de detalhe. Separei um continente entre muitos, Myambe, o foco do primeiro livro, e comecei a olhar referências.
Existe detalhes que você acaba aprendendo com estudo e observação. Por exemplo, rios geralmente seguem do centro do continente para as bordas. Eles não seguem paralelo à costa a não ser que alguma coisa (um vale, por exemplo) o force a isso. Outro detalhe é onde ficam os desertos, as selvas e as florestas no nosso mundo real. Na Terra a linha do Equador tem duas florestas tropicais enormes: a Amazônica e a do Congo, além de ilhas igualmente cheias de florestas na Ásia. Alguns graus para cima e para baixo há desertos (Saara, Oriente Médio, Namíbia, Vale da Morte, Outback Australiano). Óbvio que não é regra, pois outros elementos levam a desertificação dessas regiões. Por exemplo, as montanhas do Chile formam uma espécie de barreira que bloqueia a passagem de ar fresco pela região. Mas também vale lembrar que a geografia muda com o tempo. O próprio Saara já foi uma região cheia de rios e vegetação fechada, e partes dele já estiveram sob as águas do mar.
A importância desses detalhes é criar veracidade ao seu mundo, e ajudá-lo a pensar no surgimento e dispersão de fauna, flora e civilizações. Por exemplo, me inspirei do deserto de sal da Etiópia para criar o Kahlar do norte de Myambe. Assim como na Etiópia nômades até hoje recolhem sal e o vende nas cidades, em Myambe os “homens de sal” do Kahlar fazem o mesmo. O elemento seria só um detalhe se deixado aí. Então deu um extra: para os nobres do Império de Diamante o sal removido de charcos e do mar é considerado inferior e impuro, por não vir da terra (lembrando que na cultura deles a terra é o Imperador e vice-versa). Isso leva a uma razão pelo qual o Império nunca invadiu o Kahlar (além, é claro, da inospitabilidade da região) e para um conflito entre o Império e outro reino distante.
Claro que nesse momento tal reino distante não existia. Eu o dei um nome, mas era tudo o que precisava então. Só mais tarde, depois do livro escrito, voltei a trabalhar no mapa (falo sobre isso mais para frente).
O deserto ajudava em outro elemento. Note com funcionam as fronteiras nacionais, especialmente aquelas do passado. A grande maioria era limitada pela geografia: desertos, rios, montanhas, etc. São as fronteiras físicas que geralmente definem (ou definiam) as nações. O deserto ao norte ajudaria a justificar o porquê do Império não ter expandido naquela direção. Adicionando algumas montanhas, ajudaria a controlar a expansão do deserto. E, se a história é sobre um deus-vivo imortal, sobre um império de 2.000 anos, porque não explorar esse passado remoto com lendas? O livro acaba trazendo explicações, algumas plausíveis, outras místicas, para a existência desse deserto de sal.
Existia outro ponto importante da história, a região chamada de Costa Livre. Na história, a Costa Livre é a única (ou quase) região livre do efeito direto do Império de Diamante. Isso só funcionaria se a costa fosse fisicamente isolada do resto do continente. Adiciona-se aí uma cadeia de montanhas e vales às margens do continente, semelhante à cordilheira do Andes na América do Sul. Podemos ir mais longe: coloquei na ponta sul do continente “o Vale”, a terra prometida dos seguidores da Estrela da Manhã, a última conquista do Império. E agora temos mais elementos de história para aplicar ao livro.
Tinha detalhes, mas precisava de mais veracidade. Como você faz um mapa com costas críveis? Você copia do mundo real.
Eis o truque: Vá ao Google Maps, coloque na visão de mapa, tire o máximo possível das marcações, de um zoom suficiente para ver detalhes da costa, procure trechos interessantes. Copie, cole no Photoshop ou qualquer outro programa de edição de imagem. Faça isso algumas vezes.
No programa de edição, apague qualquer nome ou marcação que atrapalhe a costa que você “roubou”, então selecione o mar. Inverta a seleção, preencha com branco. Você terá uma “cópia de gesso” do continente. Mas não acabou aí. Agora é a parte divertida.
Abra um documento grande, jogue lá seus trechos de costa. Gire, copie, apague. Monte seu continente usando peças do mundo real, como um Lego. Quer fazer um oceano interno, um grande lago? Pegue algumas ilhas e pinte-as de azul claro ao invés de branco. Foi assim que criei as Terras Estilhaçadas ao norte de Myambe.
Myambe ficou com cara de mapa. Ficou, mas, quando comparado ao mundo real, pareceu pequeno demais. Eu esperava algo maior. Ora, então, vamos inventar mais!
Colei mais elementos ao mapa, expandindo o continente para o noroeste. Criei o Deserto de Narkeasha inspirado no Deserto da Namíbia, com direito a uma costa extremamente letal e um lago de água sulfúrica que dei o nome de Falsa Esperança (nada como achar que se está escapando de um deserto para descobrir que o oásis tem água envenenada). E aquele reino que tirava água de charcos? Como colocá-lo aqui? E se tivéssemos um mar raso, de uma extensão enorme? O mar não só permitiria a criação de uma economia voltada à coleta de sal do mar, mas também justificaria porque a região é isolada: navios de grande porte não consegue chegar até lá, deixando a Costa Livre como o único porto para comerciantes estrangeiros. Adicionemos mais alguns elementos, nomes de geografias imaginadas, mas não detalhadas: a Fortaleza Branca, Dentes de Yemallah, Reinos dos Homens Mortos, Ilha das Cabeças... Cada um seria trabalhado no futuro, quando necessário. Agora eram elementos para dar ideias, e para compor o cenário de Myambe.
A partir daí é a questão de preencher as lacunas. O que são esses lugares? Quais suas histórias? De que forma eles se relacionam com o mundo e seus personagens? Em tempo seu mundo vai fazer sentido.
gostei da técnica de ir aos poucos.
ResponderExcluirPois é. O que eu aprendi é que, quando não se dá foco a partes específicas primeiro, você acaba não conseguindo criar algo bem amarrado. E, pior, se detalhas demais o todo, é capaz de nunca acabar :)
ResponderExcluirÉ como mestrando uma aventura de RPG: vale mais focar no regional primeiro, naquele pedaço do mundo, e só depois expandir, criando na medida da necessidade. Você só precisa saber que existe um reino de feiticeiros-reis distante, mas só precisa criar a estrutura de governo e detalhes sociais quando eles forem pertinentes a sua história.
Cara li hoje todos os tópicos de criação de mundos e se não parar leio se blog inteiro hoje xD muito booom cara, sinto que meu próximo livro será bem mais rico. Obrigado!
ResponderExcluirHahaha, que bom que você gostou
ExcluirAgora, mãos à obra! ;)
E cara vc não é o único, desde a época do RPG que eu começo pelos mapas kkkkk
Excluirass: Robson