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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Construindo Mundos: Quando é o suficiente

O artigo está saindo atrasado. Ao invés de sair ontem sai hoje. Mas só porque é meu aniversário. Yeeeeh!


(Mentira. É porque me empolguei com as críticas do meu livro novo e passei o fim de semana escrevendo outro ao invés do artigo.)


Sempre adorei construir mundos. Comecei com o que hoje seria fanfic, desenhando minhas versões de Transformers, Comandos em Ação, e... tá, se você só conhece essas duas IPs pelos filmes, sinto muito. Eu nasci em 79. Eu fingi que estava doente quando tinha uns 10 anos para ver o Optimus Prime morrer em Cybertron. (Maldito Megatron!)
Tá, de qualquer forma, aos poucos fui tomando gosto por criar mundos ao ponto de ter a oportunidade de transformar isso num elemento chave da minha carreira há 10 anos. Agora, ninguém passa tanto tempo fazendo a mesma coisa sem aprender algumas coisas, seja na burrada ou estudando.


Quando lancei meu primeiro livro em 2005 eu fiz uma dessas burradas. Comecei o livro da pior maneira possível: explicando para o leitor toooooodo o background que levou dos dias de hoje (bom, dos dias de 10 anos atrás, pelo menos) até o ano de 2087, quando o “Primeiro Contato” aconteceu. E não terminou aí. Repeti o processo em outros pontos do livro. Não foi tão ruim depois que andou pelo simples fato de que Douglas Adams me ensinou muito com o Guia do Mochileiro das Galáxias: você pode fornecer informações sem parecer uma enciclopédia se contá-la de forma divertida e como se fosse uma narrativa.


Ano passado peguei o livro para reler e alterar o que meu eu de 10 anos atrás não sabia e mudei esses desastres narrativos. Por sorte (não para os leitores) eu não era o único com esse problema. Na verdade o problema é tão comum que tem um nome: "Worldbuilder’s Disease", ou Doença do Construtor de Mundos.
Você já ficou tão empolgado com a criação de um mundo que acabou falando horas sobre ele para amigos, parentes e até desconhecidos? Já escreveu artigos enciclopédicos sobre como funciona elementos pouco importantes do seu mundo? Encare os fatos: você pode ter Worldbuilder’s Disease.


Existem dois sintomas para essa “doença”. O primeiro é que você passa mais tempo criando o mundo do que criando sua história. O segundo é que você aproveita todos os cantos possíveis do seu jogo/livro/aventura enfiando esses detalhes.
Entenda: a maioria das pessoas não dá a mínima para a biologia dos cetáceos (coisa que o escritor de Moby Dick não entendeu ou não deu a mínima).


Falando em cetáceos, Douglas Adams usou uma baleia (e um vaso de petúnias) para explicar o funcionamento do Motor da Improbabilidade da nave em seu primeiro livro, e fez isso com uma narrativa engraçada que é lembrada até hoje.
“Pô, Beraldo, mas meu livro é sério!”


Sei como é. Tirando meu primeiro livro, os outros são bem sérios (o que não quer dizer que os personagens não possam ter senso de humor). A questão é que a informação deve ser diluída através de narrativa, descrição, diálogo e ação. Quando você coloca uma pataca de texto falando sobre como os anões de Bragabogue construíram o Templo de ChutaPedra com o Martelo de Boing após a Batalha de Arrotz 1.000 anos atrás a ação para. É nesse momento que o leitor dá uma bocejada lembrando alguma aula enfadonha de História e pensa em fechar o livro.


“Ei, aula de história não é enfadonho!” (Essa é minha esposa, professora de História, batendo em mim enquanto eu digito).


Não é se o professor souber como transmitir a informação, e, sim, caros colegas, o professor pode ser um contador de histórias, seja ele professor de história, geografia, física ou pique-esconde.


Existe um motivo muito bom porque todos os jogos da Bioware têm um “codex” da vida, onde o jogador acumula informações sobre o universo do jogo: porque, quando o jogador abre o codex, ele espera ler algo mais enciclopédico. Seu cérebro entra em outra marcha, porque ele sabe que aí não encontrará ação, mas sim informação direta. E o mesmo motivo pelo qual a maioria dos jogadores de MMO não se dão ao trabalho de ler textos enormes de quests. O ritmo de um MMO é rápido e, geralmente, existem centenas de quests. Se o jogador parar para ler todo texto de quest, ele vai estar “perdendo tempo” (no ponto de vista da maioria dos jogadores). É por isso que o jeito certo (ao meu ver) de se contar uma história em um MMO não é através de quest, mas sim de eventos, cenários e a disposição de objetos, monstros e loot.
Essa é uma das principais vantagens que o video game tem sobre os livros: o elemento visual que faz parte da maioria dos jogos permite a narrativa sem palavras. Já falei sobre isso antes, mencionando exemplos como Fallout. A Bethesda é mestre nisso.


Ok, e em um livro? Como eu conto sobre o mundo sem explicar tudo com palavras? A primeira resposta é que você não explica. Segure essa ansiedade. Nem tudo o que você criou precisa ser sabido pelo leitor. A informação é relevante para a história que você está contando? Se não for, corte. Todo elemento incluído numa história tem de ter um papel. Por exemplo, em Império de Diamante existe muito mais por baixo dos panos sobre o sistema de magia, existem muitos outros povos, existem províncias não mencionadas, existem personagens secundários que aparecem brevemente. Ou seja, existe muito mais “sob o capô”, mas, se não é relevante à história que estou contando NAQUELE livro, eu corto.


“Tá, mas o que eu tenho aqui é SIM relevante à história, tá!”


Tá bom. Nesse caso você precisa diluir essa informação dentro da ação.


CALMA! Resista a essa vontade louca de colocar um personagem explicando algo para outro. Isso é arriscado, e também tem nome. É o infame “As you know, Bob”. É o clássico trecho de livros antigos e alguns filmes onde um personagem vira para outro e começa falando “Como você sabe, João, vinte anos atrás nosso planeta foi invadido por alienígenas que sugam mentes e por isso nós vivemos agora no subterrâneo.”
Não, cara. Não faz isso. O truque mais usado (e que eu confesso ter usado no início do Império de Diamante) é ter um ou mais personagens que não conhecem o ambiente em que estão. Mas aí entra o uso do personagem: como cada personagem reage à informação descoberta? A partir desse ponto a informação passa não só a informar, mas também a construir e mostrar o personagem. Uma cena pode ser construída em torno da descoberta de uma informação sobre o mundo, a reação diferente de personagens diferentes e o conflito gerado por isso.


Outra forma é a do uso do monólogo interno. O personagem a quem estamos seguindo naquele momento, o ponto de vista daquele trecho da história, pensa sobre aquela informação, mas não como se lembrando de uma aula, mas sim uma memória. O personagem não lembra que a arquitetura élfica tem aparência orgânica desde o cataclisma de 424 Antes da Era da Pamonha. Ele lembra o dia quando, brincando no bosque atrás do castelo com a irmã, rabiscou seu nome em uma antiga ruína élfica e levou um esporro do seu tutor que jamais o fez esquecer de respeitar a memória dos elfos, afinal aquele tutor viveu na época do cataclisma e ainda trazia as cicatrizes emocionais do surgimento dos carros de pamonha.

Semana que vem entrarei mais em detalhes sobre a construção de um mundo e uma história focadas, e um pouco mais de como o conhecimento deste artigo se aplica na prática.

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