Lembro de jogar AD&D quando tinha lá meus 13 anos e de como meus jogadores e eu inventávamos soluções para problemas que as regras não davam suporte. Foram inúmeros os casos. Uma história ficou na minha memória. Eu estava mestrando uma aventura em que o grupo estava invadindo discretamente o covil de de goblins quando um grupo de goblins surgiu avançando através de um túnel inundado. Nesse momento, o mago do grupo declarou que usaria Shocking Grasp e colocaria a mão na água. Segundo a regra, essa magia gera uma carga elétrica que fica na mão do mago até que ele toque em algo condutivo, causando dano a esse alvo. Nada dizia sobre o efeito da magia em água. Mas aquilo fazia sentido, claro! Todo mundo sabe o que acontece se um cabo de energia desencapado cair na água. Deixei que ele rolasse metade do dano para cada um dos 3 goblins ao invés de dano total em um único alvo que atingisse.
Anos depois eu estava do outro lado da mesa jogando D&D 3.0. Tinha criado um feiticeiro que tinha não só Shocking Grasp, mas, também, True Strike (que dá um bônus altíssimo no seu próximo ataque). Enquanto fuçando sobre as armas no livro de regras, percebi que a única diferença entre a morningstar e o mace era que a primeira era mais pesada (apesar de mais cara). Todo o resto eram idênticos. Fui ler a descrição das duas armas e entendi o motivo para a falta de balanço: a morningstar é descrita com uma arma completamente de metal com um espinhos em uma extremidade, enquanto o mace é um cabo de madeira com uma peça de metal na ponta. Comprei a morningstar sem pensar duas vezes.
Durante a primeira aventura eu e o outro jogador estávamos invadindo um covil de bandidos. Em um dado momento, meu personagem ouviu o som de alguém se aproximando. No tempo que tinha usei Shocking Grasp, depois True Strike e esperei ao lado da porta com a morningstar na mão. Com o bônus absurdo do True Strike era óbvio que acertaria e causaria o dano da morningstar somado ao do Shocking Grasp.
“Oh, Beraldo. Você não pode fazer isso,” disse o mestre.
“Por que não? A morningstar é toda de metal,” respondi.
“Porque você não pode usar Shocking Grasp e uma arma ao mesmo tempo.”
Mostrei a ele o livro e a discrepância entre as duas armas, explicando que só fazia sentido qualquer um comprar uma morningstar se fosse pelo fato dela ser de metal, já que todo o resto era ruim. Falei da condutividade do metal (que ele logicamente conhecia). Até disse que se alguém usasse Heat Metal (uma magia que faz o ferro esquentar) eu estaria ferrado. O outro jogador (que também mestra em outras ocasiões) concordou.
“Não está na regra,” insistiu o mestre que já jogava RPG havia uns 10 anos.
Depois de uns 20 minutos de discussão ele acabou aceitando, nada contente.
Mas porque esse tipo de questão precisa ser discutida? Não é uma questão de lógica?
Acontece que, no fundo, ele tinha razão. Numa época em que os livros de regras começaram a substituir textos abertos à interpretação por regras específicas, a maioria das pessoas começou a mudar seu comportamento. Isso não é conclusão minha, mas um comentário dos próprios designers do novo D&D. A verdade é que, enquanto essa mudança tornava tudo mais simples e claro, incentivava a substituição da solução criativa pelo que está escrito na pedra.
Por essa razão o coração de Aventura Eterna está no contexto das coisas. Não é só o fato de que, baseado no Histórico do seu personagem, você declara ser capaz de abrir uma porta trancada ou decifrar um texto antigo. É a questão de poder usar usar uma lança alcançar um objeto distante, uma faca para cortar uma corda ou um machado para cortar um tronco. Uma arma deixa de ser só o tipo de dado a ser rolado, mas um item de verdade que vale mais do que o dano que provoca.
Vai além, claro. Quando você criar seu personagem, poderá decidir que itens carrega. Esqueça listas infindáveis de itens! O que importa é o contexto, certo? Então descreva que está levando uma bolsa de ervas medicinais gastando 2 pontos de seu total de equipamento e isso significa que, em qualquer contexto em que faça sentido usar essa bola, você poderá usar o bônus de 2 em suas rolagens. Está usando uma armadura completa enquanto tenta convencer o soldado de que é um cavaleiro? Ora, some o bônus da armadura em sua rolagem para enganá-lo! Está usando uma capa preta enquanto se esconde durante a noite? Bônus!
Nada impede, também, o oposto. Talvez o Narrador decide que sua armadura de metal é barulhenta e subtraia seu valor como penalidade em seu teste para se esqueirar por trás dos guardas.
O que importa é que é tudo uma questão de contexto!
Semana que vem vou falar sobre a criação de personagem, dando como exemplo um dos playtests mais recentes.
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