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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Playtest e design iterativo

A coisa mais interessante do game design é ver o jogo na prática. Não me leve a mal: adoro o processo criativo. E quem já trabalhou comigo sabe que eu viajo insanamente por dias, não importa a hora do dia, em novas mecânicas e como usar as velhas de forma diferente.

Mas o foco desse post é no playtest e da adaptação que vem de identificar problemas e falhas do sistema.

Existe um termo muito utilizado no design de jogos (normalmente mais ouvido em video games, mas se aplica a qualquer game design) que é a iteratividade. A ideia é bem simples: o jogo é desenvolvido em ciclos. Esqueça achar que as regras vão ser implementadas prontas e deu. Faz parte do desenvolvimento de jogos voltar atrás, repensar, refazer e retestar. É relativamente comum ver quem não tem prática na área não fazer isso, dizendo que é retrabalho ou trabalho jogador fora. É bem comum também na gerência de alguns projetos, especialmente aqueles que não estão acostumados ao desenvolvimento de jogos (e, de certa forma, projetos de criação em geral, especialmente os interativos).

Vou usar um exemplo prático. Estou desenvolvendo um RPG tradicional (ou seja, dados, lápis e papel) chamado Aventura Eterna. Tinha uma ideia bem sólida na minha cabeça (que já expliquei por aqui no blog antes), mas os testes foram bem simples, praticamente eu e eu mesmo até recentemente. Uns dois meses atrás comecei a fazer playtests esporádicos com públicos radicalmente diferentes, da minha filha de 9 anos a um hardcore gamer formado em game design e com alguns anos de profissão.

Note que nem todo playtest precisa ser tão amplo. Meu caso foi proposital: minha premissa para o Aventura Eterna é que ele seja simples de aprender, tanto que não tenho normalmente usado o termo RPG e sim “jogo de narrativas” para evitar associações clássicas. Mas é sempre interessante fazer um playtest com um público bem amplo antes de fechar no seu público alvo. O importante nesse primeiro teste foi ver se a premissa funciona e não necessariamente se o jogo se mantem a longo prazo.

Uma segunda premissa do jogo foi que tudo é baseado em contexto. Fugi do conceito de raças e classes e mesmo da compra de atributos/vantagens com pontos e fui ao extremo: você inventa o que é e o que pode fazer.

Já digo logo de cara que é uma premissa perigosa e, a primeira vista, extremamente fácil de ser abusada. Em parte é um experimento: o quanto pode um jogador abusar dessa mecânica?

Na versão testada do Aventura Eterna o jogador cria seu Protagonista (seu personagem) escrevendo duas frases simples que definem quem ele é e distribui 5 pontos entre até 5 adjetivos inventados por ele. Usando os dois casos extremos acima, consegui os seguintes personagens:


Absalom, príncipe da cidade-estado de Tizadir, líder do clero da cidade.
  • Forte 2
  • Líder 2
  • Estrategista 1

Alícia, sereia-fada do Reino do Amor, mãe de Luíza, Marta e Lila.
  • Forte 2
  • Inteligente 1
  • Linda 1
  • Carinhosa 1

(Tentem adivinhar qual foi criado pela minha filha e qual foi criado pelo hardcore gamer ;))

Conceitualmente falando foi ótimo. Todos os jogadores sem exceção criaram personagens bastante únicos mesmo no primeiro contato com as regras. Nem todos foram apresentados a um mundo pré-definido. Minha filha, por exemplo, ajudou a criar o cenário do jogo. Em ambos os casos o conceito geral funcionou muito bem.

Mas o problema é que existe uma outra mecânica de jogo, o equipamento. Cada item tem um número de pontos que, da mesma forma que com os adjetivos, são aplicados à rolagem de dados. Na prática acabou se tornando uma mecânica clonada e que acabou gerando uma ‘inflação’ dos modificadores de rolagem. A primeira solução imediata foi criar um cap, um valor máximo de bônus por rolagem. No caso, Absalom não poderia somar +2 de Força e +3 da sua espada em rolagens de ataque. O máximo seria +3. O resultado foi que os jogadores seguintes preferiram criar vários adjetivos e itens de 1 ponto que pudessem combinar de formas diferentes para sempre ter o +3 de bônus. Para piorar, o sentido dos adjetivos e dos itens, o contexto de cada um, foi perdido. Tudo fico sem graça.

De volta à mesa de projetos!

Vou abordar puxar um pouco do que falei no meu post de segunda-feira sobre criatividade. Já ouviu dizer que nada se cria, tudo se copia? Pois bem, é a mais pura verdade. Para deixar minha esposa doutoranda em História e Educação feliz vou citar o sociólogo francês Maurice Halbwachs e sua tese da memória coletiva. Em resumo bem porco, suas ideias não são suas. Elas são fruto do ambiente em que você vive e as memórias de todos que vivem nessa sociedade.


Agora que eu já fingi que sou acadêmico vou ao meu ponto.

Sempre gostei da premissa do RPG Call of Cthulhu que tem um atributo chamado Size (tamanho). Diferente de todos os outros atributos desse jogo, não é sempre bom ter Size alto. Enquanto Size alto significa mais vida, ele também significa que fica mais difícil se esconder.

Peraí... e se ao invés dos adjetivos tão abertos eu os substituísse por um conceito destes, de atributos que dizem alguma coisa sobre o personagem, mas que não é uma questão de ser sempre alto, e sim uma questão contextual? Certamente se encaixa com a premissa do jogo!

Depois de quebrar muito a cabeça com o que faria sentido, cheguei às seguintes características:
  • Agressividade: Você é calmo ou agressivo? Para para pensar ou age o quanto antes?
  • Corpo: Você grande ou pequeno? Forte ou fraco?
  • Presença: O quanto você chama atenção pelo seu porte e aparência?
  • Convicção: Você é flexível quanto aos seus ideias ou determinado ao extremo?
  • Espiritualidade: Como você se relaciona com a razão e aquilo que não tem explicação?

Note que cada uma dessas características tem aplicações positivas e negativas dependendo da situação. Ter agressividade alta certamente o ajudará em combate, mas será terrível ao tentar negociar com um aliado. Presença o ajudará em público, mas será péssimo se seu objetivo é passar despercebido. E a Espiritualidade? Ter um valor baixo nessa característica pode protegê-lo de ilusões, mas talvez o exponha-o à loucura quando alguma coisa realmente fora deste mundo aparecer na sua frente.

O mais importante é que o resultado desta alteração, coisa que só se tornou viável devido a um playtest, foi a troca de uma mecânica simplória e sem graça por algo realmente diferente. E ainda permite o uso da mecânica dos itens sem grandes problemas!

Note que isso não está escrito na pedra. Muitos playtests ainda virão. Eu não estou tão certo sobre a característica Espiritualidade (pensei em Razão, Superstição ou talvez outra coisa diferente). E quais são os valores ideias para essas características? -3 a +3? 1 a 5? Os testes dirão. E, se por acaso isso não funcionar tão bem, então voltamos à mesa de projetos mais uma vez!

A grande questão é que jogo algum está pronto logo de cara. O desafio aí é entender quando está bom o suficiente para ser entregue ao público.

Links
Aventura Eterna
Processo Criativo
Maurice Halbwachs
Call of Cthulhu RPG

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