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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Romances baseados em jogos

Quando comecei a pensar nesse artigo ele era apenas uma resenha do livro Edge of Destiny, segundo romance tie-in do jogo online Guild Wars 2, que terminei de ler ontem. Tenho a mania de ler analisando o que leio, da mesma forma que jogo analisando o que jogo. Nas últimas páginas, já sabia o que abordar, sobre o sucesso do livro como tie-in, e a falha como romance de fantasia independente. Mas logo vieram as comparações com outros livros do tipo, incluindo dois que eu mesmo escrevi, Taikodom: Despertar e o ainda não publicado Taikodom: Dogma.

Péra... se eu sou game designer e escritor, se eu já escrevi ficção tie-in para jogos, porque não ir mais a fundo nessa análise?

Ficção tie-in é aquela ficção, longa ou curta, que se conecta a um outro produto. Eu cresci lendo Crônicas de Dragonlance, uma trilogia de livros que narrava a história de um dos mais bem-sucedidos mundos do RPG Dungeons & Dragons. Tenho uma coleção de dezenas de romances inspirados no jogo de tabuleiro Battletech. O primeiro livro que li em inglês, comprado por mim mesmo, foi End Run, inspirado na série de jogos de computador Wing Commander. Todos esses são exemplos de ficção tie-in.

Nos últimos anos tie-ins inspirados em video games se tornaram uma moda não só nos EUA, mas aqui no Brasil. Qualquer livraria hoje tem cópias em português de livros baseados em jogos como Assassin’s Creed, Uncharted e até Battlefield. O motivo é duplo: promover o produto original e ganhar mais com a Propriedade Intelectual desenvolvida.

Já li livros do Halo, do Mass Effect, do Dragon Age, do Guild Wars 2. Na minha lista de livros a ler estão aqueles baseados em Bioshock, Crimson Skies e Infinity Blade. Desses o único que tenho boas esperanças é o último, escrito por Brandon Sanderson, autor das séries Mistborn, Way of Kings e do último livro da série Wheel of Time.

O problema é que no geral esses romances (inspirados em video games) são de péssima qualidade. Diferente de romances baseados em outros produtos, como os antes mencionados D&D e Battletech, além de Warhammer e outros, romances baseados em video games parecem (pelo menos até recentemente) ter uma prioridade tão baixa no orçamento da empresa que mal valem a pena como produtos independentes. Explico.


Quando fui convidado para escrever Taikodom: Despertar, o motivo era bem claro. Devia criar uma história que fosse narrada no ponto de vista que o jogador do jogo online vivenciaria. Precisava instigar o leitor a conhecer mais da história jogando o jogo. O principal motivo disso é que as histórias publicadas até então, escritas pelo veterano Gerson Lodi-Ribeiro, faziam um ótimo papel como narrativa de ficção, pintando o cenário e os conflitos, mas não no ponto de vista do jogador. “Quem sou eu e o que posso fazer” são as duas principais perguntas feitas pelo jogador ao começar a jogar um jogo, e o livro deveria fazer essa ponte entre Propriedade Intelectual e jogabilidade.

Edge of Destiny é o primeiro romance tie-in que leio que fez bem esse papel.

Que fique claro, o livro não é um ótimo livro se você estiver em busca de um romance de fantasia. A história é cheia de clichés e em muito remete às aventuras de um jogador encontrará jogando Guild Wars 2. O livro não tem um final feliz e é proposital. Ele termina não só explicando a existência de certos elementos do jogo como define o enredo das missões dos jogadores: reunir o grupo de heróis lendários Destiny’s Edge. O que o romance Edge of Destiny faz é exatamente explicar como e porquê o grupo se formou e o motivo de sua separação. Ele acaba dando ao jogador a vontade de fazer alguma coisa para ajudar a reuní-los novamente.

O defeito não é diferente dos defeitos que eu mesmo vejo no Despertar. Existem personagens que entram e saem de cena de uma forma que não faria sentido em um romance de ficção independente. Em Edge of Destiny a Rainha a quem um dos personagens se torna devoto e a aparição de uma vilã relacionada a outra personagem acaba ficando superficial e jogado na trama. É o tipo de coisa que um editor limaria do livro. Em Despertar eu fiz o mesmo com personagens como Oz, a inteligência artificial que coloca nas mãos do protagonista Santiago a escolha de assassinar duas dúzias de pessoas para salvar um número maior de vidas. Oz aparece apenas naquele momento, mas acaba apresentando uma das linhas narrativas da versão do jogo de 2008.

E os outros livros não cumpriram esse papel? Em parte, sim. Ghost of Ascalon (o primeiro romance de Guild Wars 2), os romances de Dragon Age, Mass Effect e Halo acabaram tendo um papel um pouco diferente. Suas histórias narravam o passado (muitas vezes distante) dando uma base para a história dos seus respectivos jogos. Como romances independentes talvez funcionassem melhor até por terem um início, meio e fim relativamente bem definidos, mas essa ‘vantagem’ acaba se perdendo pela péssima qualidade da edição que não só traz trechos truncados e com erros gramaticais como em alguns casos são culpados do maior de todos os pecados ao lidar com uma Propriedade Intelectual: a falha de continuidade. O romance Mass Effect: Deception, que serviria para dar o ponta pé para o jogo Mass Effect 3, foi lançado com tantos erros de continuidade que a Bioware, produtora do jogo, e a Del Rey, editora do livro, pediram desculpas públicas.

O outro grande problema é comum na direção inversa. Já jogou World of Warcraft, especialmente nos seus primeiros anos? Lembra as gigantescas paredes de texto apresentadas em cada quest? Quem lia tudo aquilo para cada quest? Relativamente poucos, e eles não estão errados.

Vou colocar aqui um quote do Jeffrey Kaplan, então Lead Game Designer do World of Warcraft, em uma palestra na Game Developers’ Conference (2009).

“Isso vai em especial para minha equipe da Blizzard: vocês não estão escrevendo um livro, porra!”

Entender que mídias diferentes pedem formas diferentes de narrativa é um problema em muitos jogos, e acontece na direção contrária. David Gaider, Lead Writer da série Dragon Age, escreveu os romances da série. Ele foi antes o responsável pela criação da Propriedade Intelectual e dos textos de vários dos personagens dos jogos. Como game writer ele é muito bom, mas, como escritor de romance...

Minha impressão é que a maioria dos romances tie-in de video games jamais seriam publicados se fossem livros independentes, enviados às editoras pelos próprios escritores, sem o investimento de marketing que a maioria dos jogos Triple A de hoje carregam.

E esses romances traduzidos para o português? São bons? Ainda não sei e, se alguém souber, comente aí embaixo, por favor. A experiência que tive até agora não me incentivou muito a investir tempo e dinheiro neles. Ouvi elogios sobre os livros mais recentes da série Halo, escritos por autores consagrados de ficção científica como Tobias Buckell e o veterano Greg Bear.

E quanto a produção nacional desse tipo de projeto? Vamos ser realistas: são pouquíssimos os projetos de jogo brasileiros que focam em uma história, e menos ainda aqueles cujos responsáveis acreditem no valor da ficção tie-in para seus jogos, mesmo como ficção curta publicada online, com as que fiz para o jogo canadense Shadow Heroes. A própria Hoplon que tanto fez propaganda de seu Taikodom como mais do que só um jogo engavetou suas histórias anos atrás. E, enquanto exista, sim, um movimento de ressurgimento, para publicar romances tie-in novamente, estamos falando de livros escritos há pelo menos 5 anos. Ao que eu percebo pela comunidade do jogo, ela agradece fervorosamente.

A questão fica: romances tie-in valem a pena? Supostamente sim, ou não seria traduzidos e publicados em outros países. Mas será que seu valor depende exclusivamente do marketing relacionado aos seus jogos ‘mãe’? E, se valem, será que a qualidade é dispensável?

Links:
Guild Wars: Edge of Destiny
Guild Wars 2
Taikodom: Despertar

6 comentários:

  1. Parabéns meu amigo Beraldo. Isso só mostra a qualidade em seus textos. Abraços.

    Huberth

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  2. parabens pelo artigo, realmente muito legal...ah, na espera do Taikodom: Dogma rsrsrs

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  3. Uma questão interessante. Respondendo sua pergunta: no meu ponto de vista, sim, os romances tie-in estão exclusivamente relacionados aos produtos "mães" e servem para os fãs. São produtos de nicho, para um público já cativo, e querer estender esses produtos para o mercado todo é, ao meu ver, uma grande arrogância. O escritor não tem nem liberdade criativa, nem liberdade de enredo - ok, talvez um pouco ele tenha, mas o ponto continua válido! Um romance não pode jamais arruinar ou contrariar o jogo, da mesma forma que o rabo não comanda o elefante. A arrogância está em querer o Dumbo voando pelo rabocóptero: vale a pena arriscar algo grande (o jogo)? Em troca do quê? A coisa fica ainda mais enlatada, pronta e acabada para atender exclusivamente os fãs da franquia quando o romance visa dar o ponto de vista do jogador. Aí o produto é mesmo para um público exclusivo e penso não precisar de maiores reflexões a respeito.
    Abraços! Nuclear

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  4. Primeiramente, parabéns pelo texto Beraldo.

    Acredito que o sucesso desse gênero está intrinsecamente ligado ao habito cultural de um nicho populacional. Nesse caso especifico creio que este sucesso, em parte, deve-se aos jogos em que estes estão ligados. Porém é de extrema relevância termos histórias bem escritas e envolventes para conquista de um publico maior e não tão somente o que chamo de publico "A". Que seriam os mais interessados em toda e qualquer literatura voltada para este.

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  5. A discussão aqui e em outra lista de email me fez pensar que vale um outro olhar nesse assunto, não o de romances tie-in, mas o de propriedades intelectuais multimídia. Vamos ver se a divisão faz sentido.

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