Teoria é ótimo, mas e a prática? Eu acredito que exemplos ajudam a entender como certas coisas podem ser feitas. E exemplos inspiram. Nada como ler um livro, assistir a um filme, jogar um jogo para ter ideias.
Primeiro vamos a um menu para facilitar a vida. Esses são os artigos publicados até o momento:
- Múltiplas Raças
- Fauna e Flora
- Magia e Tecnologia
- Histórias Cruzadas
- Deuses de Todos os Mundos Possíveis
- A História de uma Nação
- Mitos e Crenças
Passado isso, vamos ao primeiro estudo de caso: Shadow Heroes.
Em Dezembro de 2012 eu tive contato com um estúdio independente de desenvolvimento de jogos em Mississauga, uma cidade vizinha à Toronto, no Canadá. A empresa, Allied Games, tinha o projeto de um jogo de estratégia que não fosse tão complexo quanto um RTS ‘padrão’, mas que ao mesmo tempo gerasse o tipo de competição e interesse de um jogo do gênero. Starcraft 2 foi um exemplo tanto de complexidade a ser evitada como de competitividade a ser alcançada.
Trabalhei com eles durante todo ano de 2013 como Lead Writer, responsável por criar a Propriedade Intelectual, as mecânicas de narrativa, o conteúdo de jogo, etc.
“Legal, Beraldo. Mas como foi? O que você fez? Que passos seguiu?”
Calma! Vamos lá. A primeira coisa que eu precisei fazer foi entender o que eles tinham em mente para o jogo. O que o jogador faz? Qual seu objetivo? Como ele faz isso? Construir um mundo para um video game ou um RPG são questões semelhantes. O mundo precisa conversar com as mecânicas do jogo ou tudo ficará desconexo. Se nas regras desse jogo magia é uma coisa comum, você precisa levar isso em consideração na construção do seu mundo.
NOTA: A coisa é um pouco diferente na construção de um mundo para um livro ou série de contos, mas a premissa básica é a mesma: você tem uma história para contar, então seu mundo precisa fazer sentido com as ações e cenas que você tem em mente. Num artigo futuro falarei mais sobre literatura.
A empresa já tinha alguma arte pronta. Eram artes conceituais de praticamente todas as unidades do jogo, além de algumas já modeladas e animadas. Note que isso é bastante comum no desenvolvimento de video games. O escritor normalmente entra depois que o projeto já está caminhando. Pessoalmente gosto do desafio extra. Aprendi que limitações são ótimas para atiçar a criatividade.
As premissas desse desafio eram:
- A Allied queria algo com temática de animé;
- Entre os personagens existiam um arcanjo, um paladino com um canhão, uma ‘fada’, uma mulher de uniforme militar e pistolas modernas e um sujeito com sobretudo rasgado e uma lança dupla;
- O jogo tinha uma campanha single-player, mas também um modo multiplayer, e ambos deveriam se comunicar de alguma forma.
O primeiro desafio é que eu não sou grande fã de animé. Adoro Cowboy Bebop e Macross, mas não conheço muito do resto (apesar de saber um pouco de cada coisa, afinal, não existe conhecimento inútil). Foi questão de estudar um pouco o que existe por aí.
O segundo foi criar uma proposta que fizesse sentido juntando todos esses elementos em um só lugar.
O terceiro normalmente não é um problema. A maioria dos jogos ignora a lógica de facções para o multiplayer. Ninguém se pergunta porque dois grupos de Protoss estão se matando. Mas eu sou cabeça dura. Quis pensar numa lógica que funcionasse aqui, especialmente porque a Allied queria que posse possível liberar itens e unidades para o multiplayer jogando o single-player.
Comecei criando 10 ideias de cenário. Cada ideia era formada por dois parágrafos. O primeiro apresentava o mundo, o segundo apresentava o personagem e seu objetivo. Por exemplo:
Caos assola o mundo após a Pedra do Sol de uma das cidades ser destruída, fazendo com que ela pare. Sem a pedra, não há energia, nem comida, nem nada.
O jogador é um manengenheiro voluntário enviado em expedição pelo mundo para buscar uma nova Pedra do Sol antes que sua cidade seja destruída por facções rivais.
Nesse ponto eu não tinha pensado em nada com detalhe. O que é uma Pedra do Sol? Quem mundo é esse? O que é um manengenheiro? Quem são essas facções? Eu não fazia ideia.
Nenhuma dessas 10 ideias foi escrita com a intenção de ser “a ideia definitiva”. Meu objetivo era entender o que a empresa queria ou não queria em termos gerais. Por esse motivo as ideias incluíam exemplos bem diferentes.
Em um o jogador era um rebelde em um mundo pós-apocalíptico cheio de mutantes, em outro ele era o herdeiro perdido reconstruindo o reino destruído, num terceiro era líder expedicionário de um Império Britânico que viajava entre dimensões, e num quarto, um soldado morto em batalha e ressuscitado pelos deuses para batalhas ensaiadas em uma arena celestial.
O retorno dado pela equipe da Allied (no caso 6 pessoas, entre programadores, artistas e designers) me ajudou a eliminar o que não casava com a visão do projeto e identificar os elementos que mais interessavam a equipe. Os comentários ainda trouxeram ideias. Por serem conceitos vagos, a equipe acabou fazendo comentários que nada tinham a ver com o que eu tinha pensado inicialmente. No exemplo da cidade com pedras do sol, um dos programadores disse que achou muito legal a ideia de cidades ambulantes que precisam de uma fonte de energia mágica. Não tinha pensado nas cidades literalmente se ‘moverem’. Pensei no termo no sentido da cidade “estar parada” sem sua fonte de energia única.
Com esses comentários em mãos eu costurei uma nova ideia que pegava elementos de uma ideia e de outra, além de coisas novas, e que se tornou algo mais ou menos assim:
Após o Grande Ruptura que arrancou Hendrika da face do planeta e o transformou em uma ilha flutuante, os resquícios de civilidade do reino fragmentado ergueram-se em armas para formar suas próprias nações. A magia que uma vez foi parte da dia a dia no Reinode Hendrika corrompeu-se e corrompeu.
O jogador é o general de uma dessas jovens nações lutando pela supremacia em um mundo renascido de um pós-apocalipse mágico.
Essa ideia aprovada, o objetivo seguinte foi detalhar esse mundo. Quem eram essas nações? De que forma a magia corrompeu o mundo? Como isso se encaixava no conceito de magia e tecnologia vivendo lado a lado?
O Reino Mágico de Hendrika era a inveja do Mundo Conhecido. Sob o comando dos Reis-magos (um nome que nesse momento não tinha significado ou detalhe algum) criavam tudo o que seu povo necessitava. As plantações eram sempre férteis, as doenças eram curadas, as guerras eram passado. Então, um dia, os reis-magos uniram-se em um ritual poderoso (para que ou porque, eu ainda não sabia). Mas algo deu errado. Em uma explosão mágica Hendrika foi arrancada do chão. A terra chacoalhou, destruindo cidades e castelos. A capital desapareceu em ruínas, os reis-magos presumidamente mortos. Uma vez a crise terminou, a população de Hendrika encontrou-se sozinha, assustada e sem líderes.
Pronto. Acho que eles já têm medo o suficiente agora para que boa parte da população não goste de magia!
Achei a ideia de subverter a temática do pós-apocalipse interessante, então busquei outros elementos do mesmo tema: a radiação e a mutação. Criei a regra sobre a magia deste mundo, e suas consequências.
Mana é uma energia natural e invisível que existe em toda a parte. Magos são aqueles capazes de ver essa energia e tecê-la em efeitos mágicos. Assim como outras substâncias naturais, a exposição prolongada a grandes quantidades de mana pode ser nocivo ao organismo. Um acidente com magia particularmente poderosa pode ser catastrófico, deixando uma área impregnada de radiação mágica capaz de provocar mutações genéticas.
O risco do mal uso da magia tornava-se mais presente e forte aqui, e dava espaço para a existência de “seres mágicos” como o arcanjo e a fada que existiam entre as unidades do jogo.
Tinha uma base pronta, mas precisava ir mais longe. O passo seguinte seria definir que tipos de nações surgiriam neste mundo.
Semana que vem falarei sobre a criação das nações de Shadow Heroes e o primeiro passo na criação do enredo do jogo e seu personagem.
Me chamou a atenção, acredito que podemos utilizar a mesma forma de trabalho com um grupo de jogo
ResponderExcluirCom certeza. No caso o "cliente" é o grupo que vai jogar. E no caso você nem precisa detalhar tanto. Você pode focar em algo específico, e crescer na medida da necessidade. Vou falar sobre isso no próximo artigo.
ResponderExcluir