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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Construindo Mundos: Na prática, parte 2

Semana passada contei os primeiros passos do processo de criação do mundo de Shadow Heroes, um jogo de estratégia para PC em desenvolvimento por um estúdio indie canadense. Essa semana sigo com o passo seguinte.

Tinha definido a base para o mundo de Hendrika, fragmentado tanto física quanto politicamente. Precisava dar cara a quem eram essas facções lutando pelo poder.

Já havia estabelecido que existiria um conflito Magia vs. Tecnologia, mas queria fugir do padrão. Queria, ainda, puxar o conceito do pós-apocalipse mágico que parecia estar funcionando bem com a base desse mundo. O passo seguinte então foi listar ideias para cada uma dessas novas nações. Foi quase como o passo inicial, com os parágrafos curtos para definir o cenário. Aqui foi uma lista de frases, cada uma ou duas descrevendo uma nação. Não passei essa lista inicial pela aprovação da equipe. A lista era para organizar minhas ideias.

Como o jogo teria uma pegada de Player vs. Player forte eu precisava fazer como que as facções tivessem sempre motivos para brigar umas com as outras. Obviamente basear-se apenas na polaridade Magia vs. Tecnologia não daria certo.

A sacada aqui é que como cada facção tinha apenas uma frase ou duas para descrevê-la eu me forçava a pescar coisas diferentes para diferenciá-las de verdade. Devo ter feito quinze ou dezesseis “facções”, que foram mescladas para se tornarem dez que entrariam para a Bíblia de Conteúdo (falarei sobre ela daqui a 2 semanas).

Uma vez definidas essas dez ‘taglines’ (saca aquelas frases que resumem a notícia que sempre vêm abaixo do título?), escrevi um texto de 800 a 1.000 palavras sobre cada (pouco mais de uma página). De novo criei nomes de lugares, eventos e pessoas sem ir muito à fundo sobre quem eram.

Comecei propositalmente pelos dois mais ‘fáceis’, os extremos da medida Magia vs. Tecnologia. De novo foi de propósito. Uma vez eu estabelecesse as pontas, seria mais fácil criar as variações no centro.
Em uma ponta do espectro estava Hawk’s Fall (Queda do Falcão), um nome que me veio a cabeça completamente do nada depois de ver uma das ilustrações originais do jogo, onde uma cidade medieval era construída dentro de uma caverna. Hawk’s Fall seria o lado ‘magia é bom se for bem usada’ do mundo. Lógico que fugi do padrão magocrata. Em Hawk’s Fall quem tinha o dom era treinado numa academia formal, mas era então alocado a uma profissão/especialização de acordo com seus dons e a necessidade da comunidade. E não estamos falando em treinar magos que jogam bolas de fogo, mas magos que fazem plantações crescer, muralhas ficarem mais fortes e curam doenças. Além disso, o governo estava na mão de uma espécie de ‘conselho de anciãos’.

Agora, se em um mundo onde muita gente teme magia existe uma nação que aceita e treina pessoas com dons mágicos, o que aconteceria? Aqui está a questão de pensar nos reflexos do que você cria no seu mundo. A primeira coisa que me vem a cabeça é que existiria um fluxo grande de pessoas indo até lá. Só que se sua nação é basicamente uma cidade dentro de uma caverna (cuja justificativa está amarrada ao nome e a sua afinidade à magia, claro), logo você terá um problema populacional. Em certo ponto a própria população da cidade começou a se tornar xenofóbica na medida em que mais em mais refugiados apareciam. A cidade, incapaz de suportar as levas de imigrantes, sofre. Uma favela surge do lado de fora da caverna.

Agora sim a coisa está ficando interessante!

No extremo oposto temos a Republic of Three Towers (República das Três Torres). Também tirei esse nome da cartola. Simplesmente veio na cabeça e eu escrevi. Mas dar sentido a ela não foi difícil. E aí vem a magia de estar criando um mundo novo: voltar atrás e modificar o que você já criou.
Eu tinha dito que ninguém sabia porque os reis-magos tinham arrancado Hendrika do chão e, enquanto eu ainda não sabia, me parecia fazer sentido que em algum momento eles construiriam uma muralha mágica gigantesca para proteger a entrada do reino. Imagine a muralha de gelo da Guerra dos Tronos, mas feita de pedra fortificada por magia. Agora eu sabia que os reis-magos fizeram o ritual para proteger Hendrika. Claro que a defesa de um reino não é só muros altos. Precisa-se de soltados.

A República havia sido formada por sobreviventes da guarnição da ponta mais a leste da Grande Muralha que sobreviveu justamente porque, apesar dos terremotos, aquele pedaço de muralha (e as 3 últimas torres da fileira) permaneceram intactas por serem mágicas. Nos anos seguintes os soldados da região, percebendo que não havia mais governo, tentaram controlar a região como podiam, tomando a força recursos se preciso (afinal, era uma região de fronteira que dependia da capital).

Para tornar a República a ponta oposta a magia eu precisava fazê-los odiar magos (que brinca com a ironia de que seus líderes só sobreviveram por estarem em uma muralha mágica). A coisa começou com uma mistura de paranoia e propaganda. Era mais fácil que a população local aceitasse a proteção da guarnição nesse momento de caos se acreditassem que monstros existiam lá fora, que os reis-magos eram os culpados por tudo, etc. Décadas depois os republicanos tornaram-se supersticiosos ao ponto de abandonar filhos nascidos com deformidades ou poderes mágicos.

Mas eu podia ir mais longe. E se a República dependesse desses ‘mutantes’? Lembra que eu disse que era uma região de fronteira dependente da capital? E se eles usassem força escrava para sobreviver? E se esses escravos fossem mutantes com poderes mágicos?

A República se tornou ainda mais paradoxal: um reino anti-magia que dependia da magia para existir.

Mas isso não tornaria a República meio vilã? Ah, aí é que está. A República não fez isso. Foram os antigos comandantes da guarnição. Anos se passaram e um golpe derrubou o governo corrupto e instaurou a República. Pronto. A culpa não era mais da República, mas dos bandidos que tornaram a região um inferno décadas antes.

Adorei.

A simples existência dessas duas nações gerou conflito imediato. Hawk’s Fall tentaria dar apoio à fuga de escravos na República, a República ameaçaria invadir Hawk’s Fall acusando-a de corromper Hendrika com sua magia, e, ao mesmo tempo, nenhuma das duas era vilã ou heroica.  Cada uma tinha suas justificativas para fazer o que faziam. Isso seria o ponto de partida para a primeira versão da história do jogo (da qual falarei mais semana que vem).

Depois das extremidades, foi questão de trabalhar as variações. Cheguei às seguintes nações. Vocês encontram uma descrição delas aqui (em inglês).
Já tinha uma base relativamente sólida, mas precisava de uma história. A história ajudaria (e muito a definir mais detalhes sobre o mundo.

Semana que vem falo sobre a história de Shadow Heroes: Vengeance in Flames.

2 comentários:

  1. Eu gosto muito de sentir esse fluxo de criatividade. É o meu momento favorito no processo de criação, como se eu pudesse ver uma imensa teia se formando. É simplesmente fantástico.

    Agora, assim. Eu não sei se isso acontece com vc, mas eu passo longos intervalos repensando o que criei/conectei. Isso me deixa travado e, às vezes, decepcionado com minha incapacidade. Vc também é perfeccionista assim? Se for, como faz pra lidar com isso?

    Abraço.

    PS: Quero manifestar que me sinto abandonado por você. Cadê o post semanal? *chora* /drama mode off

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  2. Que bom que você se sentiu abandonado! Não, péra. Não é isso! É que significa que fez falta. Ou seja, a série deve ser boa :D

    Esses últimos dias têm sido complicados, com a Brasil Game Show semana passada (eu precisava terminar dois protótipos para uma apresentação) mais prazo apertado de entrega de um conto E encaixotando coisas para minha mudança semana que vem. Mas logo logo a série continua!

    Repensar e refazer não é incomum, especialmente se você tem ideias demais. O que você precisa aprender é quando é edição e quando é detalhamento. A principal forma de fazer isso é estabelecendo prazos para você mesmo. Quando faço isso para uma empresa eu mesmo combino prazos de entrega para evitar esse vai e volta. Se algo novo vier eu penso: é detalha? Então ok. É mudança? Vale a pena? Se não vale, anoto e uso em outra situação, outra história, etc.

    Agora, quando o projeto não é pago, como por exemplo desenvolver um mundo para um RPG ou para um livro novo, a melhor forma de lidar com esse problema (para mim) é dar foco em assuntos ou áreas específicas. Se o resto do mundo ficar vago o suficiente, eu posso depois adicionar ideias a esses outros lugares. Ou talvez a mudança não seja exatamente uma mudança, mas uma 'verdade oculta'. "Todos pensavam que o culto de Shalamala venerava um artefato antigo, mas na verdade o artefato é um computador alienígena com uma inteligência artificial poderosíssima!" Tecnicamente aí você não está mudando :D

    Quando mestrando RPG eu faço isso direto: adapto o mundo e a história às espectativas dos jogadores. Você pode fazer algo semelhante com livros e jogos dando aquele foco que eu mencionei ali em cima. No próximo livro, próximo jogo, você pode ajustar ideias que vieram de antes. Ou você acha que o George R R Martin pensou em tudo sobre a série toda? Nada! Ele mesmo já confessou que tinha conceitos gerais, mas foi criando de verdade na medida em que escrevia os livros.

    (Pronto! Praticamente um artigo novo! ;) )

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