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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Construindo Mundos: Bíblia de Conteúdo

“Ai, Deus, lá vem o Beraldo usando termo religioso em vão!”

Nem começa. “Bíblia de Conteúdo” ou “de série” ou "de Propriedade Intelectual" é um termo técnico que surgiu na televisão. É um documento de referência cujo objetivo é guardar todas as informações relevantes sobre uma série de tv ou cinema. E não é coisa só de seriado de ficção científica ou fantasia. Toda série de TV tem uma bíblia que geralmente é atualizada ao longo do tempo. O nome da mãe de um personagem foi mencionado num episódio? A informação vai para a ficha dele na Bíblia.

Claro que nem tudo é tão simples. Star Wars começou todo errado. Não tinha bíblia porque George Lucas achava que não precisava (até porque mudava de ideia o tempo todo). Nos anos 90, quando veio uma enxurrada de produtos relacionados (livros, RPGs, video games), não existia nenhum documento de referência para criação de novo conteúdo. O resultado? Uma zona.

A Disney sabe o valor de uma Bíblia de Conteúdo, e é por isso que a partir de agora só os filmes, o desenho Clone Wars e o que for produzido de novo é considerado ‘canon’ (outro termos referente à bíblia) no universo ficcional. O resto são ‘lendas’. O motivo é totalmente válido. Além de por ordem na casa, isso faz com que novos escritores tenham acesso a uma documentação de referência unificada onde podem buscar detalhes sobre raças, planetas, tecnologias e personagens. Sabe um exemplo de Bíblia de Conteúdo? Um livro de RPG, aqueles que apresentam um mundo. Não são completos, claro, pois propositalmente deixam espaço para a imaginação dos jogadores e mestres, mas é aquele o tipo de conteúdo e formato que você encontra em uma Bíblia.

E está aí o ponto mais importante da função da Bíblia (de conteúdo): referência para criadores de conteúdo. A Bíblia não vai para as mãos dos jogadores, leitores, telespectadores e afins. Não é essa sua função (apesar de vez ou outra virar item de colecionador). Sua função é garantir que todas as histórias contadas neste universo ficcional sigam as regras dele mesmo, que não existam buracos ou inconsistências. Já devo ter mencionado isso antes. Boba Fett tem umas 3 ou 4 origens antes de Ataque dos Clones, e nenhuma delas é como clone.

“Tá, mas e eu preciso de uma Bíblia de conteúdo?”

Depende. Você está escrevendo um conto ou um jogo com pouco foco em narrativa? Então a resposta provavelmente é não. Mas se você está trabalhando em um livro ou em um jogo onde a história e a ambientação são muito relevantes, você precisa de um documento de referência. Não precisa ser necessariamente grande. Ele pode crescer com o tempo, se for preciso. Mas sem um documento como esse você corre o risco de tornar sua história e seu mundo inconsistentes. Sem falar que é muito mais difícil depois, quando for escrever o próximo livro ou jogo, encontrar se você em algum momento já mencionou a cor dos olhos de um personagem. Acredite.

“E eu faço o quê, então? Saio escrevendo em um doc?”

Não existe regra. Bom, não exatamente. Séries de TV geralmente têm um documento em texto com imagens que pode ser impresso ou distribuído internamente como PDF. Mas os formatos variam. De uns anos para cá o sistema Wiki é bem comum. Usei variações dele em 5 projetos em que trabalhei com níveis diferentes de sucesso. A meu ver quando se trabalha com equipes grandes é a melhor solução. Mesmo sozinho pode ser útil pela organização. Eu pessoalmente mantenho um único documento no GoogleDocs com informações sobre um mundo ou parte de um mundo. Por exemplo, na minha série de livros Eternos (Império de Diamante deve sair esse semestre pela Draco! Cruzem os dedos!) eu criei um documento por livro. O motivo é que em cada livro a história se passa em um continente diferente, cada um com suas próprias particularidades. Mas existe um outro documento, mais geral, que tem foco no mundo como um todo. As “regras” de como funciona o mundo estão lá. O que aparece nos outros documentos são as particularidades e, em especial, como as culturas locais entendem essas regras. Espíritos em um lugar podem ser seres transdimensionais em outro, deuses num terceiro, etc, contanto que isso se refira apenas a percepção e não aos fatos. As regras, aquelas as quais o seu mundo se baseiam, não podem nunca serem violadas.

“E eu preciso disso antes de começar a escrever o livro/jogo?”

É uma série de TV? Sim. Você vai precisar de uma descrição dos personagens e uma sinopse da primeira temporada.

Não é? Então não, apesar de que empresas interessadas em criar primeiro uma propriedade intelectual (como foi meu caso com o Shadow Heroes, e a Bioware com Mass Effect e Dragon Age) começam primeiro pela Bíblia, depois desenvolvem a história em particular. A meu ver não existe projeto de jogo no Brasil que precise de uma Bíblia tão complexa e completa como aquelas criadas pela Bioware (nunca vi, só li a respeito). Nem mesmo o Taikodom que, pelo menos nesse sentido, foi o maior projeto do tipo feito por essas bandas, justamente por originalmente ter um foco pesado em conteúdo e narrativa. Mas caso você não comece em algum lugar, mais tarde será bem mais complicado.

Comece com anotações. Separe em temas: povos, regiões, magia, viagens espaciais, etc. Escreva lá o que for relevante, cole trechos do seu texto. Lembre-se que isso é para você e não para o usuário final. Está mais para texto técnico do que texto ficcional. Mais tarde você pode voltar, corrigir, adicionar, subtrair, organizar.

"Exemplos, Beraldo! Eu quero exemplos!"

Então toma! Bíblia do reboot da série Battlestar Galactica e da série Star Trek: Voyager.

Vai que seu projeto é um sucesso e o público clama por uma continuação. É melhor você saber onde encontrar que tipos de roupas os povos do Vale usam antes de escrever algo inconsistente que será pego e criticado pelos seus fãs.

Semana que vem o assunto fica sério: Serious Games.

4 comentários:

  1. Sensacional o seu material. Estou acompanhando todos os posts e vão ficando melhores a cada tema explorado. Como todo aspirante a escritor e mestre de RPG sempre prezei por criar os mundos dos meus jogos. Agora, com essas referências, sinto que posso fazê-los com muito mais foco e direcionamento. MUITO OBRIGADO por compartilhar sua experiência.

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  2. Obrigado, Matheus! Fico feliz que esteja gostando.

    Se tiver algum tema que queria que eu aborde por aqui, é só avisar.

    Abs

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  3. Ótimo post.

    Nunca tinha ouvido falar do termo, apesar de já conhecê-lo de alguns MMO's.

    Resolvi fazer algo relacionado num livro que comecei a escrever, e é incrível saber que existe respaldo pra isso.
    Acredito, no alto da minha ignorância, que este artefato consegue auxiliar bastante na criação e aperfeiçoamento de um mundo/raça/item/cenário.

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  4. Ele é mais comum em séries de tv (você encontra algumas pela internet), mas têm sido muito usada em jogos, especialmente em projetos maiores. Em livros, costuma ser usado só por quem faz séries grandes (apesar de que todo autor mantém pelo menos um documento com suas anotações). É ótimo pra evitar buracos e paradoxos nos história

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