Marcadores

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Não existem jogos sérios

Uns meses atrás foi anunciado mais um concurso do Sebrae para a criação de jogos sérios. Lembro que em um grupo de desenvolvedores de jogos brasileiros um ou outro fizeram piada, achando que “jogos sérios” fosse um termo sem sentido criado por alguém que não entende de jogo.


Preconceitos a parte, existe algo muito sério (hah) nessa conclusão. Faz sentido isso? “Jogo sério”? Mas o intuito de todo jogo não é o entretenimento?


O termo existe. Serious Games, do inglês, é um termo bastante difundido e, diga-se de passagem, é uma das áreas da indústria de jogos mais firme no Brasil. Em grande parte são descendentes do ensino a distância, que teve lá sua época de textos infinitos e quizzes, passou por um período de jogos casuais para testar conteúdo e hoje em dia entra no espírito do jogo ‘de verdade’, usando noções de game design para produzir resultados. Ao longo da minha carreira eu tive a oportunidade de trabalhar nessa indústria, de me irritar com quem achava nos idos dos anos 90 que ensino a distância era só colocar um livro online e depois cobrar uma prova, mas também tive a chance de trabalhar em projetos realmente divertidos.


Briguei muito nessa época e, 15+ anos depois, ainda brigo com isso. Então vou logo jogar a bomba polêmica aqui para começar a discussão:


Não existem jogos sérios. Existem temas sérios.


Todo o jogo tem o dever de entreter, seja ele sério ou não. Se seu jogo não entretém, ele não é um jogo. Esse é um conceito complicado ainda nos dias de hoje, especialmente em se tratando de jogos corporativos.


Entenda: quem compra a ideia de fazer um serious game para uma empresa é na maioria das vezes o RH. Seu objetivo é reduzir os custos da empresa e aumentar a satisfação dos funcionários através de novas metodologias de treinamento, avaliação, integração, etc. E, enquanto essas empresas (ou pelo menos seus gerentes de RH) têm a mente aberta para buscar soluções além dos já batidos workshops, retiros, dinâmicas de grupo e etc, convencê-los de que entretenimento vem em primeiro lugar nem sempre é tão fácil.
Existe, claro, uma segunda barreira: custo. O dinheiro investido na criação de serious games corporativos geralmente é aquele que iria para pagar os workshops, retiros, dinâmicas, etc. Ou seja, é pouco. As empresas que vivem desse negócio, aquelas que criam esses jogos, acabam muitas vezes preferindo a solução mais simples e barata: texto e quiz. Ou seja, praticamente o mesmo que o ensino a distância dos anos 90.


Em contrapartida, existe o meio acadêmico.


Eu conheço esse meio de formas além de como fornecedor e consultor de jogos. Estudei História na faculdade (depois de ter feito Desenho Industrial) e casei com uma professora quase-doutora. Tenho vários amigos mestres e doutores, e vivo criticando como certas coisas são tão desnecessariamente arcaicas e formais nesse meio. Era de se esperar, então, que exatamente aí se encontrasse um problema. Não seriam exatamente os acadêmicos aqueles com resistência em inovar, e os corporativos mais interessados no que há de mais novo e cutting edge na metodologia de ensino?
Pois minha experiência até agora me provou justamente o contrário. Trabalhei em projetos de jogos educacionais para crianças e conversei com professores pesquisadores interessados em criar projetos de treinamento de professores cujas mentes eram muito mais abertas do que a de muito empresário. Foi, inclusive, devido a uma dessas conversas, que se tornou palestra na USFC no final de 2014, que resolvi escrever esse post.


Por que eu disse que não existem jogos sérios, mas sim temas sérios? A verdade é que em todo o mundo (não só no Brasil) muitas vezes faz-se jogos sérios da forma errada. O entretenimento é secundário, quando deveria ser, na verdade, a força motriz.


Em 2012 eu montei um projeto para concorrer a um prêmio da SBGames, com apoio do Banco do Brasil, sobre educação financeira. Fiz um projeto de jogo em primeiro lugar, usando a informação da educação financeira como contexto e mecânica de jogo. Simplificando a ideia, o jogador precisaria decidir se gastava sua energia e dinheiro jogando um endless runner ou investia em melhorias e estudos que a longo prazo dariam mais retorno financeiro (e consequentemente de jogo). Conhece o dilema clássico do Homem-aranha? Combater o crime ou trabalhar para pagar as contas? A chave, claro, é o balanceamento. A ideia foi bem recebida? Bom, ela tirou 2o lugar no concurso.
Uma busca rápida pela internet revelará alguns vídeos com palestras da game designer e pesquisadora Jane McGonigal sobre o uso do game design para melhorar a vida das pessoas, seja com a mudança de comportamento ou com o aprendizado de novas habilidades. Como ela mesma diz em um desses vídeos existe toda uma geração hoje que aprendeu mais sobre liderança, trabalho em equipe e comunicação jogando MMOs do que em qualquer workshop.


Jogos ensinam lógica e raciocínio através de suas mecânicas. Minha filha estuda em uma escola onde Xadrez é uma matéria obrigatória até a 5a série. Os professores todos percebem a diferença em relação às crianças de outras escolas. Jogos ensinam, também, história. Existe um vídeo espetacular de outra game designer, Brenda Brathwaite (Romero), em que ela conta sobre o jogo que criou na hora para ensinar a filha sobre o tráfico negreiro. O resultado é espetacular e vale assistir.


Mas existem outros jogos assim? Jogos comerciais que tratam desse tipo de assunto?


Já jogou This War of Mine?
Esse jogo, criado por um estúdio polonês, é uma simulação de guerra, mas não um jogo de tiro. Seu objetivo como jogador é manter um grupo de civis vivo durante uma guerra. Basta algumas horas de jogo para você começar a questionar certo e errado. Será que vale a pena deixar essa pessoa se juntar ao meu grupo? Ela tem habilidades que vão ser valiosas ou será apenas mais uma boca para alimentar? Roubo os mantimentos desse outro grupo de sobreviventes ou procuro em outro lugar? Mas um dos meus sobreviventes está doente e eles parecem desarmados...


Uma visita aos reviews do jogo no Steam dá uma ótima visão do que está acontecendo. Em muitos casos não são reviews; são histórias dramática. O jogo está fazendo refletir. O que eu faria numa situação dessas? Como é a vida num lugar como esses? Afinal de contas, sim, existem lugares e pessoas passando por essas mesmas situações neste exato momento!


Temas podem ser abordados também através de contexto e personagens. Não há como não falar da Bioware e o trabalho cada vez mais inclusivo e, pode-se dizer, provocativo que a equipe tem feito nas séries Mass Effect e Dragon Age. Sem spoilers, Dragon Age Inquisition, o mais recente jogo da empresa, aborda de forma séria e madura questões de gênero de forma espetacular. Vai da presença de mulheres importantes na trama até a existência de um personagem transgênero.
Eu poderia ir longe aqui escrevendo mais sobre esse assunto, mas aí ninguém ia ler!


No entanto acredito que o texto até aqui já cumpriu seu papel. Espero que esse texto gere discussão, gere reclamação, gere o que for. Acho que já está mais do que na hora desse tipo de tema ser tratado por quem trabalha na área.

Vou jogar aqui os vídeos que mencionei, para que vocês possam assistir caso não os tenham visto ainda. Estão com legenda em Português para quem preferir.

Brenda Brathwaite: Jogar para compreender

2 comentários:

  1. O João. Finalmente li seu texto. Tenho algumas considerações sobre a minha visão de "jogo sério", ou pelo menos como me acostumei a trabalhar com isso. Pra mim não importa se o tema é sério para ser um jogo sério. O que é um tema sério pra começar? Gênero? Guerra? Matemática não é um tema sério? Balonismo? Animais? É possível que um serious game possa ser sobre um parque de diversões, porque não? Concordo demais quando você diz que "não existem jogos sérios" porque um jogo não deve ser *sério*, mas sim *divertido*, no entanto acho que o tema "sério" pode até ser algo do nosso tempo, da aurora da gameficação e coisas do tipo. Na minha concepção e da forma que trabalho, o jogo sério, na verdade tem apenas uma diferença de um jogo "convencional". O jogo convencional ensina muitas coisas, muitas, mas muitas vezes o que um jogo convencional ensina não é um requisito de projeto. Ninguém é "obrigado" a aprender teamwork jogando mobas, mas acontece. Então, o jogo sério tem um papel de "obrigatoriamente" ter um conteúdo específico a ser transmitido. Mesmo que isso esteja mascarado num fantastico jogo de mundo aberto, plataforma, point-and-click ou whatever. É uma diferença sutil (que quando mais não for percebida pelo jogador, melhor foi o design do jogo), mas que dá muito mais trabalho pra gente. Abraço.

    ResponderExcluir